Por que Repetimos? Freud e Lacan explicam
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Atualizado: há 3 dias
Por que repetimos? O que repetimos? E o que fazer com essas repetições?
Essas são as indagações centrais feitas pelo professor Daniel Omar Perez à psicanalista Juliana Radaelli no episódio #21 do podcast Filosofia e Psicanálise, do ESPECast, disponível no canal do YouTube.
O tema da conversa gira em torno de um dos grandes conceitos da teoria freudiana: a repetição.
Acompanhe este artigo sobre a temática e sinta-se à vontade para deixar suas impressões nos comentários.
Boa leitura!
Evitando o sofrimento
Nós repetimos. Repetimos coisas que nos causam prazer, que consideramos repetições positivas — um bom encontro, uma experiência agradável, uma boa lembrança. Isso não costuma nos causar estranhamento. É natural desejar que esses momentos se repitam.
Mas a questão que realmente intriga a psicanálise é: por que repetimos experiências que nos causam dor e sofrimento?
A repetição não é uma escolha consciente. Ela é um ato inconsciente, uma manifestação automática e não voluntária que conduz o sujeito a reviver situações de sofrimento — mesmo quando, em nível consciente, ele deseja evitá-las.
Assim, o sujeito repete para se proteger, como se criasse, por meio da repetição, um mecanismo para se preparar para o inesperado. Paradoxalmente, para evitar o sofrimento, o sujeito sofre.
A repetição não seria, então, apenas uma insistência no erro, mas um modo de lidar com algo que não pôde ser simbolizado. Repetimos para tentar dar sentido — mesmo que fracassadamente — àquilo que nos aconteceu.
A psicanálise propõe que, ao tomar consciência dessas repetições, o sujeito possa abrir um espaço para transformá-las.
No setting analítico, ao repetir, o paciente tem a oportunidade de se dar conta do que está em jogo — e transformar o que antes era apenas ação inconsciente em elaboração psíquica.
Vamos ver como isso é possível com base na teoria freudiana — e também nos desdobramentos feitos por Lacan.
A repetição em Freud
A psicanalista Juliana Radaelli propõe que nos apoiemos em dois textos fundamentais de Freud para refletir sobre a repetição.
O primeiro deles é Recordar, Repetir e Elaborar (1914), escrito em um momento em que Freud se depara com impasses na clínica — especialmente em relação à transferência e à resistência.
“A ideia de Freud nesse texto é dizer que o sujeito repete algo no campo da ação que ele não consegue rememorar”, explica Juliana. “Ele vai dizer que, ao repetir, o sujeito não se dá conta da repetição.”
O segundo texto indicado é Além do Princípio do Prazer (1920), onde Freud examina um tipo de repetição que contraria a busca pelo prazer — aquelas que provocam desprazer.
Aqui surgem perguntas fundamentais: por que repetimos o que é desagradável? Por que voltamos a padrões que nos fazem mal?
Um exemplo clássico são as neuroses de guerra. Soldados retornavam do front e reviviam, repetidamente, cenas traumáticas do campo de batalha em seus sonhos — imagens angustiantes, revividas de forma compulsiva.
Outro exemplo é o famoso caso do "fort-da". Freud observa seu neto brincando com um carretel, que a criança joga para longe diversas vezes, encenando a perda — como se elaborasse simbolicamente a ausência da mãe.
Esses exemplos mostram que há algo no funcionamento do psiquismo que responde ao trauma por meio da repetição.
Em Além do Princípio do Prazer, Freud retoma uma linguagem presente em seus primeiros escritos — especialmente no Projeto para uma Psicologia Científica — aproximando-se de um vocabulário quase biológico.
Freud propõe que o organismo cria um escudo protetor contra excitações externas. Quando esses estímulos não são compreendidos ou simbolizados, tornam-se fontes de sofrimento.
“Repetir seria um modo de se proteger das excitações e estímulos externos”, elabora o professor Daniel Perez. E Juliana complementa: “Se proteger das excitações externas que não são compreendidas.”
Mas por que isso acontece? Por que jogar o objeto para longe? Por que os soldados revivem as mesmas cenas perturbadoras?
Freud dá a isso o nome de compulsão à repetição (Wiederholungszwang). E o mais intrigante: o sujeito não se dá conta de que está repetindo.
“Aprendemos que o paciente repete ao invés de recordar, e repete sob as condições da resistência.” — Sigmund Freud, Recordar, Repetir e Elaborar (1914).
Os vínculos afetivos são um dos campos mais marcados pela repetição. Escolhemos parceiros semelhantes, recriamos dinâmicas familiares inconscientes, buscamos o que já conhecemos — mesmo que nos machuque. Ou seja, não repetimos por escolha racional, mas por uma força inconsciente.
Se Freud nos mostra que repetimos o que não conseguimos simbolizar, Lacan vai mais além: o que há de estrutural na repetição para o sujeito do inconsciente?
O Automatismo de Repetição em Lacan
Jacques Lacan retoma o conceito freudiano de Wiederholungszwang (automatismo de repetição) para destacar que a repetição não é um ato voluntário, mas algo que se inscreve na cadeia significante — ou seja, na própria estrutura da linguagem que constitui o sujeito.
Lacan inicia seu Seminário sobre “A Carta Roubada” — conto de Edgar Allan Poe — com a seguinte afirmação:
“Nossa investigação levou-nos ao ponto de reconhecer que o automatismo de repetição (Wiederholungszwang) extrai seu princípio do que havíamos chamado de insistência da cadeia significante.”
Para Lacan, repetimos não porque queremos, mas porque estamos submetidos à lógica da linguagem. O sujeito do inconsciente está preso a uma estrutura simbólica que o antecede e que determina, em grande parte, suas escolhas e repetições.
Essa estrutura organiza a posição do sujeito no discurso e sustenta os modos de repetição que ele vive.
No espaço da análise, o discurso do paciente surge por meio da associação livre — e é nesse ponto que ele se revela como sujeito do inconsciente.
“Aquilo que dizemos livremente já estaria determinado pelo inconsciente”, observa o professor Daniel Perez, em seus estudos sobre os Ditos e Escritos de Jacques Lacan, percurso para os assinantes da plataforma.
O papel do analista, nesse contexto, não é interpretar no sentido tradicional, mas oferecer ao paciente a possibilidade de se ouvir.
Se o sujeito entra no setting analítico, fala sobre sua vida, conta seus traumas e fracassos, mas não há um ato analítico — um corte, uma intervenção precisa — ele pode passar anos repetindo sem transformação real.
“Apenas contar o sofrimento inscreve o sujeito no registro do imaginário — numa narrativa que gira em torno de si mesma, sem deslocamento”, explica Daniel.
Para que haja uma mudança significativa, é necessário um segundo momento: o sujeito precisa ouvir o que ele mesmo diz. É nesse movimento — do dizer ao escutar — que a repetição pode se desarticular, abrindo espaço para a elaboração e para a construção de um novo sentido.
Conclusão
Afinal, por que repetimos?
Repetimos porque somos atravessados por experiências que não conseguimos simbolizar completamente. Porque, em algum ponto, algo falhou na nossa capacidade de elaborar — e o que não pôde ser simbolizado retorna na forma de repetição.
O que repetimos?
Repetimos padrões afetivos, traumas não resolvidos, cenas que nos marcaram profundamente.
Repetimos não só o que nos dói, mas também aquilo que, mesmo doloroso, nos é familiar. Como se voltássemos sempre ao mesmo lugar, buscando uma saída que ainda não encontramos.
E o que fazer com essas repetições?
O primeiro passo é reconhecê-las. A psicanálise não promete eliminar a repetição, mas oferece um espaço onde ela pode ser escutada, interpretada e, aos poucos, transformada.
Na análise, o sujeito tem a chance de passar da repetição inconsciente à elaboração simbólica.
Assista ao episódio completo:
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Referências Bibliográficas
Freud, S. (1914). Recordar, repetir e elaborar. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XII. Imago Editora.
Lacan, J. (1966). Escritos. In: Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Transcrição e adaptação:
Renata Suhett é jornalista, especialista em marketing, escrita e mídias sociais. Formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário de Barra Mansa - RJ.
Autor do episódio:
Daniel é psicanalista, pesquisador e professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutor e Mestre em Filosofia pela Unicamp, com pós-doutorado na Michigan State University nos EUA e em Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn na Alemanha. Autor de diversos livros de Filosofia e Psicanálise. Obteve o título de licenciado em filosofia em 1992 na Universidade Nacional de Rosario (Argentina). Publicou artigos científicos em revistas nacionais e internacionais, livros e capítulos de livros sobre filosofia e psicanálise.
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