Amor, Desejo e Falta: Um Olhar Psicanalítico sobre Isso que nos Escapa
- ESPEcast
- 13 de jun.
- 6 min de leitura
Ainda que ‘todos’ seja um exagero, é fato que, em alguma medida, gravitamos em torno do amor. E não apenas gravitamos — criamos constelações ao redor dele, especialmente quando nos lançamos à experiência de amar e sermos amados por um parceiro ou uma parceira.
Mas de que amor exatamente estamos falando?
Será que existe um termo capaz de definir o amor de forma absoluta, uma palavra final para o amor, que o contenha por inteiro, sem deixar espaço para a dúvida, o excesso ou o mistério? Uma que o explique tanto que nada mais precise ser sentido?
Seria o amor das imagens perfeitas, dos finais felizes de cinema, das redes sociais que filtram a realidade? Ou o amor “real”, aquele que nos transforma, nos frustra e, ainda assim, nos move?
A psicanálise, especialmente através de Freud, nos convida a olhar para o amor com menos ilusão e mais profundidade. Em seu texto Introdução ao Narcisismo (1914), Freud nos alerta:
“Um forte egoísmo protege contra o adoecimento, mas, afinal é preciso começar a amar, para não adoecer, e é inevitável adoecer, quando, devido à frustração, não se pode amar.” — Sigmund Freud
Amar, portanto, é um risco inevitável. E talvez seja justamente nesse risco que o amor mais verdadeiro aconteça.
Mas por que amar nos coloca em risco? O que falta em nós que torna o amor, ao mesmo tempo, tão desejado e tão ameaçador?
Amar é Perder: A Falta que Sustenta o Desejo
Se considerarmos que o amor nasce da falta, e essa é uma das premissas fundamentais da psicanálise, a ameaça está exatamente na perda desse outro a quem amamos.
Mas aqui cabe um parêntese: não é exatamente o outro que tememos perder numa relação amorosa. O medo real está em perder a imagem que criamos de nós mesmos junto a esse outro, com todas as trocas, projeções e significados que essa relação edifica.
É preciso considerar que não existe experiência amorosa sem um ideal imaginariamente criado. E que toda realidade é posta a partir do olhar que idealizamos.
Quando algo nessa relação se ausenta ou falha, é nesse ponto de ruptura que o amor pode se sustentar, no “apesar de”, ou se esvair, redirecionando-se para outros lugares.
É certo que desejamos o que nos falta, e o outro aparece como promessa de preenchimento. Sem a falta, ou mesmo a possibilidade de sua existência, o amor talvez não seja capaz de existir.
Isso pode ser observado na teoria freudiana, especialmente em O Mal-Estar na Civilização (1930), onde ele afirma que é o programa do princípio do prazer que estabelece a finalidade da vida.
Aquilo que chamamos corriqueiramente de felicidade seria, na verdade, a satisfação repentina de necessidades altamente represadas e, por sua natureza, possível apenas como um fenômeno episódico.
Para Freud, quando realizamos um desejo, isso nos resulta num bem-estar quase morno. Com o amor, acontece o mesmo.
Um parceiro ou parceira ideal, que cumpra nossa lista imaginária de perfeições, não se sustentaria por muito tempo, por, no mínimo, dois motivos:
Porque ninguém é perfeito, e suas falhas logo aparecerão;
Porque nós mesmos não suportaríamos esse estado contínuo de harmonia.
Como diz Freud, citando Goethe: “Nada é mais difícil de suportar do que uma série de dias belos” — embora ele mesmo admita que isso possa ser um exagero.
Reconhecer essa falta pode ser doloroso. Ela nos confronta com a carência, a solidão, a incompletude. Mas é justamente por não sermos inteiros que nos lançamos ao encontro. O desejo nos move e, com ele, a esperança de conexão.
Mas o que acontece quando essa falta se torna insuportável, quando o desejo já não consegue mais sustentar o vínculo amoroso?
A Fantasia Amorosa e a Realidade (In)Capacitante
Existe um modo muito singular de o sujeito enxergar a própria vida, e Freud chamou isso de realidade psíquica.
É nesse terreno que se constitui a vida amorosa idealizada, ela habita nossas fantasias. Projetamos no outro aquilo que gostaríamos que ele fosse. Criamos uma narrativa perfeita, um amor utópico, platônico.
É nesse ponto que Freud, ainda em Introdução ao Narcisismo, esclarece que:
“O enamoramento consiste num transbordar da libido do Eu para o objeto. Ele tem o poder de levantar repressões e restaurar perversões. Ele eleva o objeto sexual a ideal sexual.”
Em outras palavras, ao amar, investimos o outro com elementos inconscientes que ultrapassam sua realidade. Como esse investimento ocorre, muitas vezes, segundo condições infantis de amor, aquilo (ou aquele) que as preenche será, inevitavelmente, idealizado.
Quando esse outro não adere ao papel imaginário que lhe foi atribuído, surge um furo, e essas idealizações começam a ruir, muitas vezes uma a uma. A realidade passa, então, a nos decepcionar.
E vai decepcionar mesmo. Porque nenhum outro pode sustentar o peso de um ideal. A decepção, nesse sentido, é inevitável, mas também é necessária. É apenas após a quebra da idealização que algo mais verdadeiro pode emergir.
Por outro lado, se ninguém suporta ser ideal, também é difícil viver sem fantasia alguma. Encarar a realidade nua e crua, em sua falta de sentido e imperfeição, é frequentemente um desagrado.
Em certa medida, a fantasia nos protege, tornando o insuportável um pouco mais habitável.
Talvez o ponto central esteja em reconhecer um limite: até que ponto consigo preservar uma vida atravessada pela falta e pela falha, tanto do outro quanto das minhas próprias, sem que isso anule a possibilidade de amar?
O que seria, então, um “relacionamento saudável” senão a tentativa contínua de amar apesar do descompasso entre fantasia e realidade?
Mas se amar é aceitar a falta, como manter o desejo quando ele já não encontra no outro esse ideal que nos fascinava?
Como Fazer o Amor Durar
Na psicanálise, o amor não é apenas o que se sente. É o que se faz com isso. É ação, construção, relação.
Quando procuramos alguém, buscamos também aquilo que podemos fazer com esse outro, e com aquilo que ele desperta em nós.
Não se trata de encontrar alguém perfeito, mas de se perguntar: o que é possível fazer com esse outro real, com suas falhas, seus limites, suas diferenças?
O amor, então, deixa de ser fantasia e se torna um ato de coragem. Coragem de ver o outro como ele é. De não fugir diante da frustração. De permanecer, mesmo quando a idealização cai. É só depois que a fantasia fura que o amor pode começar a durar.
Um amor duradouro não é aquele que nunca falha, mas sim o que sobrevive à falha. É o amor que reconstrói o laço depois da decepção. Que aprende a renunciar a certas expectativas. Que acolhe a falta, sem cobrar do outro uma completude que ninguém é capaz de oferecer.
Nesse ponto, o Eu precisa ceder, abrir espaço para o outro. E essa abertura é também um risco, adoecer por amor, como dizia Freud, pode ser inevitável. Mas recusar o amor para proteger-se também adoece.
Conclusão: O Amor que é Possível
O amor não é aquilo que idealizamos, é aquilo que conseguimos fazer com o que temos.
Talvez esse seja o maior desafio, e, ao mesmo tempo, o maior presente do amor: não viver o amor ideal, mas o possível.
Aquele que se move entre erros e acertos, que se reinventa diante da decepção, que cresce não apesar das falhas, mas com elas.
A psicanálise nos convida a abandonar os roteiros prontos e encarar o que de fato está ao nosso alcance: a possibilidade real de amar alguém imperfeito, com aquilo que somos, e com tudo o que nos falta.
Conheça o ESPECast: A Plataforma de Estudos de Psicanálise
No ESPECast, reunimos grandes nomes da psicanálise contemporânea para refletir sobre temas fundamentais — e o Amor é um deles.
Ana Suy, Débora Damasceno, Jorge Sesarino, Daniel Omar Perez, entre outros pensadores, estão conosco nessa jornada, conduzindo percursos para entendermos o Amor na psicanálise.
Se você se interessa por psicanálise e deseja aprofundar seus estudos com profundidade e sensibilidade, te convidamos a conhecer nossa plataforma.
Ao se tornar membro, você terá acesso a:
Mais de 300 horas de cursos e conteúdos exclusivos sobre os mais diversos temas;
Aulas com os maiores nomes da psicanálise brasileira;
Encontros ao vivo para tirar dúvidas e dialogar com especialistas.
Uma comunidade ativa com mais de 2.000 assinantes, pronta para trocar experiências e fortalecer vínculos.
Junte-se agora à maior comunidade dedicada à psicanálise no Brasil — e aprofunde seu olhar sobre aquilo que (nos) falta.
Transcrição e adaptação:
Renata Suhett é jornalista, especialista em marketing, escrita e mídias sociais. Formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário de Barra Mansa - RJ.
Autor do episódio:
Daniel é psicanalista, pesquisador e professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutor e Mestre em Filosofia pela Unicamp, com pós-doutorado na Michigan State University nos EUA e em Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn na Alemanha. Autor de diversos livros de Filosofia e Psicanálise. Obteve o título de licenciado em filosofia em 1992 na Universidade Nacional de Rosario (Argentina). Publicou artigos científicos em revistas nacionais e internacionais, livros e capítulos de livros sobre filosofia e psicanálise.
Comments