Borderline: Um Diálogo entre a Psiquiatria e a Psicanálise
- ESPEcast
- há 1 minuto
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Na última década, o termo borderline ganhou protagonismo nas discussões sobre saúde mental no Brasil, seja no meio clínico, acadêmico ou nas redes sociais. Frequentemente associado a quadros considerados “limítrofes” entre neurose e psicose, esse diagnóstico desperta debates sobre sua validade, seus limites e suas implicações terapêuticas.
A psicanálise de orientação lacaniana, especialmente a partir dos avanços teóricos sobre a psicose não desencadeada, ou psicose ordinária, significante proposto por Jacques-Alain Miller, tem contribuído para reler esse território clínico.
A hipótese de que muitos dos chamados casos borderline possam, na verdade, corresponder a estruturas psicóticas não desencadeadas expande os horizontes de escuta, de manejo e de intervenção clínica.
Foi a partir dessas inquietações que se estabeleceu um diálogo entre três profissionais com formações distintas e olhares complementares: Francis Juliana Fontana, psicóloga e psicanalista com longa experiência em hospital psiquiátrico; Mozarth Nascimento, médico psiquiatra com trajetória clínica e hospitalar na gestão em saúde mental; e Daniel Omar Perez, psicanalista, doutor e mestre em Filosofia.
Este artigo nasce da transcrição e elaboração crítica de um episódio do podcast Filosofia e Psicanálise e propõe uma travessia teórica pelos pontos de convergência e contraste entre psiquiatria e psicanálise na abordagem das psicoses.
Enquanto a primeira opera com categorias diagnósticas e nosológicas, a segunda aposta na estrutura do sujeito, na função da linguagem e no manejo transferencial como vias de leitura e de estabilização possíveis.
Boa leitura!
Estrutura ou Diagnóstico? Dois Paradigmas de Leitura da Psicose
A conversa entre os convidados do episódio revela, desde os primeiros momentos, uma tensão fundamental entre dois paradigmas clínicos na abordagem da psicose: a estrutura, conceito central da psicanálise de orientação lacaniana, e o diagnóstico, tal como operado pela psiquiatria contemporânea.
A psicóloga e psicanalista Francis Juliana Fontana compartilha sua inquietação em torno das questões do desencadeamento e da estabilização na psicose, uma temática que a levou a investigar não apenas o fenômeno da internação, mas, sobretudo, o momento em que ocorre o rompimento psicótico. “Saber quando e por que ocorre o desencadeamento é fundamental para pensarmos o tratamento”, afirma.
Na perspectiva psicanalítica, esse momento não é visto como um simples surto, mas como uma ruptura no modo de relação do sujeito com a realidade. Francis destaca ainda que, na psicose, a transferência, pilar da clínica psicanalítica, assume formas específicas, frequentemente marcadas por modos persecutórios ou erotomaníacos, muito distintas da transferência na estrutura neurótica.
Por outro lado, o psiquiatra Mozarth Nascimento fala a partir de uma prática orientada pelos critérios nosológicos e pelas categorias classificatórias do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5).
Para a psiquiatria, toda psicose é desencadeada, uma vez que se define, justamente, por um rompimento com a realidade, característica que diferencia quadros como a esquizofrenia e o transtorno afetivo bipolar tipo I, quando há sintomas psicóticos.
Mozarth é enfático: “Na psiquiatria, não existe o termo ‘psicose não desencadeada’. Quando se diagnostica uma psicose, é porque o surto já aconteceu”.
Essa divergência entre os dois campos torna-se clara quando Francis sustenta que, sob a ótica psicanalítica, é possível identificar sujeitos estruturados na psicose mesmo sem terem vivido um surto, ou seja, sem o desencadeamento clássico.
O contraste entre estrutura e diagnóstico revela, assim, duas formas distintas de operar o sofrimento psíquico. Essa diferença, no entanto, não implica uma oposição.
Ao contrário, o diálogo entre os dois campos, como o que se constrói neste podcast, pode abrir caminhos para novas formas de tratamento e acolhimento clínico.
Psicose Ordinária e Borderline: O que está em jogo?
Entre os conceitos discutidos no episódio, a noção de psicose ordinária, proposta por Jacques-Alain Miller, ocupa um lugar importante para pensar casos que escapam ao modelo clássico do surto psicótico.
Trata-se de uma forma de psicose em que não há ruptura manifesta entre os registros do Real, Simbólico e Imaginário, como ocorre nos quadros desencadeados. Ao contrário, esses registros permanecem articulados, amarrados, por meio do sinthoma, uma invenção subjetiva ou o uso particular de um significante estabilizador (Nome-do-Pai).
Essa forma de organização psíquica permite ao sujeito encontrar um modo de estar no mundo, sem recorrer a delírios ou alucinações. A estabilidade, nesse caso, não impede o sofrimento, mas evita o colapso.
O caso James Joyce aparece como ilustração privilegiada dessa estrutura. Segundo Francis, Joyce nunca apresentou um surto psicótico, mas encontrou na escrita uma via de amarração que sustentou seu laço com o mundo. Sua obra, ao funcionar como suplência, impediu o desencadeamento.
A psicose ordinária, assim, desafia os limites da clínica tradicional e amplia o campo da escuta na psicanálise. Permite reconhecer sujeitos cuja estrutura psicótica não se manifesta nos moldes clássicos, mas que exigem, ainda assim, um manejo clínico preciso e singular.
Estabilização e Transferência: Como operar clinicamente?
A partir de sua experiência em hospital psiquiátrico, Francis Fontana aponta os limites da abordagem tradicional diante de sujeitos psicóticos, especialmente em contextos de internação.
Ela observa um padrão recorrente: internações curtas, altas rápidas e reinternações frequentes — em geral, sem um dispositivo de escuta analítica que sustente um trabalho a longo prazo.
Esse cenário a conduz a investigar as formas possíveis de estabilização na psicose, especialmente em casos nos quais não há desencadeamento manifesto. Francis ressalta que, até 1975, Lacan sustentava a clínica das estruturas, neurose, psicose e perversão, como moldura diagnóstica.
Contudo, com o Seminário 23 (O Sinthoma), Lacan propõe um deslocamento importante: deixa em segundo plano a lógica estrutural e passa a trabalhar com os registros do Real, Simbólico e Imaginário (RSI), além do sinthoma como quarto elemento capaz de operar uma amarração própria.
Nesse novo esquema, a estabilização não passa necessariamente pela metáfora paterna. Pode ocorrer por meio de invenções subjetivas, criações que funcionam como suplências e amarrações entre os registros. O caso de James Joyce é emblemático: sua escrita se constitui como sinthoma, funcionando como amarração que o preserva de um surto psicótico.
O “Homem dos Lobos” e os Limites do Diagnóstico
Essa perspectiva amplia o campo clínico e permite abordar sujeitos cuja organização psíquica exige um manejo fora do “padrão”. Um exemplo discutido foi o do “Homem dos Lobos” (Sergei Pankejeff), caso clássico da clínica freudiana.
Daniel Perez retoma o contexto de vida do paciente, marcando sua infância privilegiada, criado por babás que o atendiam em sua língua nativa, vestiam-no e alimentavam-no, e a posterior ruptura drástica com essa realidade após a Revolução Russa.
Com a ascensão dos comunistas, Sergei perde suas terras, seu status e seus privilégios sociais. A pergunta que Daniel lança é provocadora: essa queda social e simbólica poderia ser compreendida como fator de desencadeamento psicótico?
A interrogação desloca o foco do trauma individual para a incidência do real, ou seja, para o ponto em que o sujeito é confrontado com algo que escapa à simbolização.
Francis Fontana responde, a partir da perspectiva lacaniana, que o desencadeamento psicótico não decorre de um único evento traumático. Para Lacan, trata-se de uma conjunção estrutural: um encontro com o real impossível de ser simbolizado, a falência de um suporte imaginário e a tentativa de convocar o simbólico, que não responde. Ou seja, um colapso dos três registros, simultaneamente.
Mozarth Nascimento complementa essa leitura com os aportes da psiquiatria contemporânea, apontando que eventos como mudanças abruptas no ambiente, traumas, perdas e vulnerabilidades genéticas podem funcionar como gatilhos importantes para desorganizações psíquicas.
Ele destaca a epigenética como um campo fértil para investigar como experiências de vida podem ativar marcas biológicas já inscritas, por exemplo, predisposições latentes à psicose ou a quadros psicossomáticos complexos.
No caso específico do Homem dos Lobos, discute-se ainda a hipótese de que ele não tenha apresentado uma psicose desencadeada no sentido estrito, mas sim um quadro limítrofe ou uma organização mais ambígua.
Daniel e Mozarth relembram o debate diagnóstico em torno do caso: para Freud, tratava-se de uma neurose obsessiva grave; para outros, uma psicose maníaco-depressiva, conforme os critérios de Emil Kraepelin, psiquiatra alemão considerado fundador da psiquiatria moderna.
Essa divergência ilustra a chamada “querela dos diagnósticos”, como define Daniel, especialmente quando se considera que, hoje, muitos dos sintomas de Sergei poderiam ser associados ao espectro da bipolaridade.
Mesmo com essas discordâncias classificatórias, há um consenso em torno de um ponto crucial: o que está em jogo na clínica não é apenas o nome que se dá ao diagnóstico, mas sim a possibilidade de identificar pontos de estabilização, invenções ou recursos subjetivos que o sujeito encontra, ou pode encontrar, para lidar com o real.
Estabilização e Transferência
Por fim, Francis retoma a questão da transferência na psicose. Ao contrário do que se observa na neurose, onde a transferência se fixa no amor ao saber como fundamento, na psicose ela pode se manifestar de forma erotomaníaca ou persecutória.
Essa escuta abre espaço para estabilizações possíveis, sejam elas simbólicas, imaginárias, sintomáticas ou até mesmo práticas, como um trabalho, uma escrita, uma rotina.
Na interlocução entre a psicanálise lacaniana e os avanços da psiquiatria contemporânea, Francis, Mozarth e Daniel abrem espaço para uma clínica que não se aprisiona em rótulos diagnósticos, mas se deixa guiar pelo desejo de acompanhar, com ética e escuta, as invenções subjetivas que permitem ao sujeito existir.
Conclusão: Escutar a Singularidade
O encontro entre Francis, Mozarth e Daniel não se resume a uma simples contraposição entre teorias. Trata-se de uma aposta ética na escuta da singularidade, na clínica que vai além de classificações e se orienta pela construção de caminhos possíveis para o sujeito.
Ao articular psicanálise e psiquiatria sem hierarquias, este diálogo evidencia que, para além do diagnóstico, é a escuta comprometida com a invenção subjetiva que pode sustentar a clínica das psicoses — com ou sem surto.
Essa disposição ao diálogo permite pensar a clínica da psicose não como território exclusivo de uma disciplina, mas como um espaço de escuta compartilhada. Um espaço em que o que está em jogo não é a classificação, mas a possibilidade de oferecer uma resposta ética ao sofrimento psíquico.
Convidamos você a assistir ao episódio na íntegra, que revela como, apesar das diferenças de linguagem, conceito e operação clínica, há um ponto de convergência real entre psiquiatria e psicanálise: o sujeito.
Em tempos de medicalização crescente e diagnósticos apressados, retornar à singularidade do sujeito é mais do que um gesto clínico, é um posicionamento ético. É justamente nesse gesto que filosofia, psicanálise e uma “boa psiquiatria” podem se encontrar.
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Transcrição e adaptação:
Renata Suhett é jornalista, especialista em marketing, escrita e mídias sociais. Formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário de Barra Mansa - RJ.
Autor do episódio:
Daniel é psicanalista, pesquisador e professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutor e Mestre em Filosofia pela Unicamp, com pós-doutorado na Michigan State University nos EUA e em Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn na Alemanha. Autor de diversos livros de Filosofia e Psicanálise. Obteve o título de licenciado em filosofia em 1992 na Universidade Nacional de Rosario (Argentina). Publicou artigos científicos em revistas nacionais e internacionais, livros e capítulos de livros sobre filosofia e psicanálise.
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