Do Desejo ao Gozo na Psicanálise
- ESPEcast
- 2 de mai.
- 7 min de leitura
O que é, afinal, o desejo na psicanálise? Como ele se articula com o gozo, conceito fundamental introduzido por Jacques Lacan? E qual é o papel do Outro na constituição do sujeito?
Essas são algumas das perguntas que nos guiam neste artigo, inspirado no episódio “Desejo e Gozo com Jorge Sesarino”, disponível no canal do YouTube do ESPEcast – Filosofia e Psicanálise.
Nele, o psicanalista Jorge Sesarino nos convida a discutir O Amor, o Desejo e o Gozo na psicanálise, e suas implicações clínicas para aquilo que chamamos de cura.
Se Freud e Lacan concebem o desejo como uma força estruturante do sujeito, como podemos compreender a diferença entre desejo e gozo? E qual é o lugar da linguagem, da fantasia e da falta na constituição de nós mesmos?
Siga conosco nessa travessia, vamos descobrir o que a psicanálise tem a nos ensinar sobre essa força que nos habita e nos move. Sinta-se à vontade para compartilhar suas impressões nos comentários.
Boa leitura!
A Chegada ao Mundo e o Desamparo
Chegamos ao mundo em total desamparo. Se há algo de universal à condição humana, é essa entrada na vida marcada pela dependência do outro. E não apenas dependemos do cuidado material, mas também — e sobretudo — do desejo desse outro, que pode ser entendido tanto como o corpo da mãe quanto como o lugar simbólico que ela ocupa.
Não escolhemos entrar no circuito do desejo. Somos lançados nele pela via do desejo do outro. Jacques Lacan expressa isso nos Escritos, 1966, página 345, ao dizer que “...o desejo do homem se aliena no desejo do outro”.
Como afirma o psicanalista Jorge Sesarino no episódio do ESPEcast, “Um desejo inconsciente, e uma fantasia erótica, põe a biologia a funcionar”. Com isso, ele destaca que nossa existência, mesmo em seu início mais biológico, já estaria atravessada por um desejo que não nos pertence, mas nos constitui.
Ao nascer, o bebê expressa suas necessidades — chora, grita, busca ser alimentado, acolhido. No entanto, o que está em jogo ultrapassa o campo da necessidade. Ele deseja algo mais: o amor do outro. É nesse ponto que o desejo se apresenta, como algo que não se reduz à satisfação, mas aponta para o laço, para o reconhecimento, para o ser desejado.
O exemplo da mamada, citado por Sesarino, ilustra com clareza essa dinâmica: “O bebê busca leite, mas também busca amor.” A busca não está apenas no objeto real, mas no gesto, no olhar, na presença — ou ausência — do outro. É aí que se revela a estrutura do desejo, que não se vincula diretamente à satisfação, mas sim ao movimento contínuo de desejar.
Mas se o desejo não se reduz à necessidade, e se sua origem está no Outro, qual é o papel da linguagem e da falta nessa constituição desejante?
Desejo, Falta e Linguagem
Depois de inseridos no circuito do desejo — por meio do desejo do Outro — passamos, enfim, a desejar. Como afirma Jorge Sesarino: “A sociedade humana está articulada, enlaçada, pela via de um desejo.”
O desejo, portanto, não é um fenômeno individual isolado, mas um elo que nos liga aos outros, que estrutura as relações humanas.
O desejo está diretamente ligado à falta. Somos seres incompletos, e é justamente essa incompletude que nos faz desejar. Há sempre algo ausente, inacessível, irrealizado — e é isso que impulsiona o sujeito.
Essa falta estrutural não é um defeito, mas sim a condição mesma de sermos sujeitos. Como nos lembra Lacan, ao longo do Seminário VII – A Ética da Psicanálise, o desejo não visa a satisfação, mas a manutenção do próprio desejar. Desejamos desejar.
Para sustentar esse desejo, o sujeito se apoia na fantasia. Ela funciona como uma cena imaginária, que organiza sua relação com o objeto e tampona a falta. Nas palavras do professor Sesarino, “a fantasia veste o desejo” — dá-lhe forma simbólica, mas nunca o preenche de fato.
Essa estrutura se articula em torno do que Lacan chama de objeto pequeno (a), o objeto causa do desejo. Ele não é um objeto real, concreto, mas sim aquilo que representa a perda original — algo que nunca se teve, mas que marca a busca contínua.
O sujeito deseja aquilo que falta, e a fantasia representa esse impossível de forma encenada, em objetos de consumo, em ideais, em narrativas pessoais.
Jorge Sesarino propõe uma ilustração psíquica desse processo: o bebê é introduzido no desejo pelo desejo do Outro. Esse Outro precisa seguir desejando e demonstrar isso em ato, no cuidado.
A partir daí, uma estrutura fantasmática se forma — uma tentativa de organizar uma necessidade que o bebê não conhece bem, mas que o Outro interpreta e transforma em demanda.
Essa demanda, por nunca ser plenamente satisfeita, produz um resto — e esse resto é o que inaugura a falta como elemento constitutivo. É da diferença entre necessidade e demanda que surge o desejo.
Esse funcionamento, que começa ao nascer, não desaparece na vida adulta. Muito pelo contrário — ele se refina e se expressa de maneiras bem mais elaboradas.
Na clínica psicanalítica, é por meio da fala que o sujeito dá existência ao seu desejo, ou deveria dar. Ao se engajar na associação livre — a regra fundamental da psicanálise —, o sujeito começa a escutar o que diz para além do que pretende dizer. É nesse movimento que o desejo se articula e se estrutura no campo do discurso. É a linguagem, portanto, que funda o sujeito do desejo.
Mas se a linguagem estrutura o desejo, o que acontece quando ela falha, quando ela não dá conta de nomear? É justamente aí que começamos a nos aproximar do conceito de gozo.
Desejo e Gozo
Vamos seguir o exemplo da relação mãe-bebê para compreendermos o caminho que vai do desejo ao gozo.
Nos primeiros tempos de vida, a mãe (ou quem ocupa essa função) oferece ao bebê tudo aquilo que ela acredita que ele precisa. Nesse movimento, o bebê passa a ocupar um lugar especial: o de um objeto de satisfação para o Outro.
Ele se torna, por um tempo, aquilo que preenche a falta do Outro — alguém de quem se goza. Nessa relação, existe um gozo que não passa pela palavra. É um gozo direto, corporal, silencioso — fora da linguagem.
O amor, nesse contexto, pode abrir frestas simbólicas, permitindo que o desejo se constitua sem que o sujeito fique aprisionado ao gozo do Outro. Como diz o professor Jorge Sesarino: “só o amor faz suplência à falta.”
No Seminário 7, Lacan apresenta a Lei do Pai e a lógica fálica como limites ao gozo, antes visto como simples transgressão. No Seminário 11, ele traz o conceito de mais-de-gozar, entendendo o gozo como excesso — algo que escapa à linguagem e vai além do que pode ser simbolizado.
Assim, entre o gozo que aprisiona e o desejo que move, a psicanálise propõe ao sujeito uma travessia: sair do lugar de objeto do gozo do Outro para tornar-se sujeito do próprio desejo.
É pela via da palavra, da escuta e da transferência que esse desejo pode se rearticular, abrindo espaço para novas possibilidades de existência. Essa travessia não promete uma vida sem falta, mas oferece a chance de não ficar submisso ao gozo mortífero.
Mesmo que o gozo não possa ser totalmente eliminado, a psicanálise aposta na possibilidade de que o sujeito não ceda quanto ao seu desejo — como propõe Lacan em sua ética.
Conclusão: Desejar é Viver
Desejar é viver — é se colocar em relação com o Outro, é reconhecer a falta como parte inseparável da existência. O desejo é motor e estrutura, é aquilo que nos move e nos constitui como sujeitos. Já o gozo, quando em excesso, pode ser paralisante, nos aprisionando em repetições que impedem o surgimento do novo.
A psicanálise não promete felicidade plena, nem a eliminação da dor. Mas ela abre a possibilidade de que o sujeito sustente seu desejo, mesmo diante das perdas, dos impasses e das impossibilidades da vida. Como afirma Lacan:
“O único pecado é o de ceder quanto ao próprio desejo.” (LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 384)
E talvez seja justamente aí, ao não ceder quanto ao seu desejo, que o sujeito possa reinventar algo de sua existência — não como quem busca completude, mas como quem encontra, no próprio desejar, uma forma singular de viver.
Vamos além nessa conversa?
No episódio do ESPEcast, o professor Jorge Sesarino compartilha uma leitura sensível e profunda sobre O Amor, o Desejo e o Gozo na psicanálise, abordando suas implicações clínicas e a relação com a cura.
A conversa percorre conceitos fundamentais de Freud e Lacan, trazendo exemplos que ajudam a pensar o lugar do desejo na constituição do sujeito e o desafio de sustentar esse desejo na vida e na clínica.
Desejar é também seguir pensando. Que tal continuar?
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Referências Bibliográficas
LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: A ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
Transcrição e adaptação:
Renata Suhett é jornalista, especialista em marketing, escrita e mídias sociais. Formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário de Barra Mansa - RJ.
Autor do episódio:
Daniel é psicanalista, pesquisador e professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutor e Mestre em Filosofia pela Unicamp, com pós-doutorado na Michigan State University nos EUA e em Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn na Alemanha. Autor de diversos livros de Filosofia e Psicanálise. Obteve o título de licenciado em filosofia em 1992 na Universidade Nacional de Rosario (Argentina). Publicou artigos científicos em revistas nacionais e internacionais, livros e capítulos de livros sobre filosofia e psicanálise.
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