de Schopenhauer e o Mal-Estar na Civilização
Artigo Dois da série Mitos e Psicanálise, baseado no percurso de mesmo nome já disponível na plataforma ESPEcast
Na plataforma ESPECast, está disponível o percurso “Mitos e Psicanálise”, ministrado pela Dra. Elci Patti, juntamente com a Dra. Ane Patti. Esse percurso apresenta a articulação de alguns dos contos e mitos utilizados por Freud e Lacan com a práxis psicanalítica.
Os mitos, que estão presentes nas civilizações há milênios, são construções simbólicas importantes no processo civilizatório da humanidade, e eram repassados na tradição oral, à princípio, e, posteriormente, escritos em cada época e cultura com algumas modificações, por conterem elementos fundamentais que contribuem na compreensão sobre a estruturação psíquica do ser humano e seus laços com o social.
De acordo com os estudos da Psicanálise alguns contos e mitos, revelam uma parte da realidade psíquica universal, que é singularizada no enredo subjetivo de cada sujeito. Por isto, quando uma criança lê ou escuta a narrativa dos contos de fadas e representa-os no “faz de conta”, ela se inclui no campo imaginário, real e simbólico linguageiro, abrindo assim um espaço para falar de si, atualizando uma realidade psíquica inconsciente através dos discursos dos personagens por ela representados.
Em “Escritores criativos e devaneios” (1908), Freud nos apresenta que o brincar e o fantasiar são facilitadores da constituição subjetiva do Sujeito falante e desejante. Para Lacan, “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” e para ele, esta realidade psíquica inconsciente pode ser atualizada a qualquer momento pela linguagem falada ou corporal.
Para facilitar os estudos sobre a psique, Freud, desde o início de sua obra, utilizou alguns Mitos para facilitar os estudos da Psicanálise. Lacan, posteriormente, fez uma revisão destes estudos acrescentando alguns outros e dedicando uma profunda reflexão sobre o mito individual como estrutura subjetiva fundamental.
A seguir, vamos ler sobre o conto do Porco Espinho, ou a alegoria de Schopenhauer, como nos conta no percurso a Dra. Elci Patti.
Boa leitura!
A parábola do porco-espinho
Neste episódio do percurso “Mitos e Psicanálise”, a Dra. Elci Patti nos convida a conhecer uma metáfora criada pelo filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), utilizada por Freud para abordar a questão das dificuldades dos seres humanos em controlar suas pulsões sexuais, em especial as pulsões agressivas.
Schopenhauer cria a metáfora do porco espinho, publicada em sua obra Parerga e Paralimpomena em 1851, para ilustrar o problema da convivência humana.
“Ele cria essa parábola, essa lenda, esse mito dos porcos espinhos, como uma metáfora para falar sobre as relações humanas, as dificuldades das relações humanas. Ele tinha uma preocupação também política de manter a civilização: como é que ia acontecer essa civilização, se ela ia acabar. Então ele tinha aquela preocupação filosófica.” – diz a Dra. Elci.
Ela consta apenas de um parágrafo e conta que havia um grupo de porcos espinhos perambulando num dia de frio de inverno. Para não congelar, os animais chegavam mais perto uns dos outros, mas, no momento em que ficavam suficientemente próximos para se aquecer, começavam a se espetar. Um espetando o corpo do outro. Um sangrava e o outro sangrava também. Isso levava os porcos espinhos à morte.
Nos conta a Dra. Elci, narrando a metáfora de Schopenhauer: “O pastor que cuidava daqueles porcos ficava muito preocupado, porque os porcos espinhos também eram animais que eles criavam para a alimentação dos povos daquelas tribos naquela época. Então o que que ele pensou? Bom, eles têm que se aproximar o aquecimento de um - a energia de um - vai passar para o outro. Mas não podem ficar muito próximos a ponto de um espetar o outro e levar à morte. E assim ele fez, ele tentou articular os porcos espinhos - os grupos - um protegendo o outro, um aquecendo o outro, até passar aquele duro inverno. E deu certo!”
Os porcos espinhos, então, não podiam ter muita intimidade, muita proximidade, porém deviam manter uma proximidade suficiente para manter a vida.
Em Freud
Freud vai se utilizar dessa metáfora para ilustrar a questão dos laços sociais, em uma época de sua obra onde ele questionava sobre o porquê das guerras. Estamos no período pós-Primeira Guerra Mundial. Freud havia perdido muitos familiares nessa guerra, muitos pacientes. Os hospitais estavam cheios de pessoas mutiladas por essas guerras. Os traumas psíquicos dela também o fizeram questionar muitas coisas.
Em seu famoso texto “Mal-Estar na Civilização”, de 1930, Freud postula sobre o momento em que a civilização acabaria por destruir a si mesma se o ser humano não obedecesse algumas leis básicas, como a lei da proibição do incesto por exemplo, e não controlasse a sua agressividade. Essa também era uma das preocupações de Schoppenhauer.
Freud vai se perguntar, tanto no citado “Mal-Estar na Civilização” , como em um texto de 1921 chamado de “Psicologia das Massas e Análise do Eu”: Por que as Guerras? Por que tantos maus-tratos? Por que as pessoas maltratam aqueles que mais gostam. Quanto mais intimidade se tem, mais maltrato se tem também.
Ao se questionar sobre isso, Freud percebe que há em nós pulsões que de um lado são amorosas e de outro hostis. Essa agressividade – ou pulsão de hostilidade – aparece muito espontaneamente nas relações humanas. O bebê quando começa a ter dentinhos, ao mesmo tempo que suga o peito da mãe ele o morde, como exemplifica em sua argumentação a Dra. Elci.
No texto de 1921, Freud se utiliza da metáfora de Schopenhauer na tentativa de justificar um pouco essa natureza humana. “Mantenhamos perante nós a natureza das relações emocionais que existem entre os homens em geral.” – diz a Dra. Elci, complementando que, como na metáfora dos porcos espinhos, os seres humanos não toleram uma aproximação demasiada íntima como próximo.
“Os dados da psicanálise mostram que quase toda relação afetiva e íntima, de certa duração entre duas pessoas, casamento, amizade, relações entre pais e filhos, contém um depósito dessas pulsões de maus tratos. Isso é algo que faz parte da subjetividade humana e é algo como que devemos ter um cuidado a mais.” – pondera a Dra. Elci, completando: - “Nós estamos vendo os governos colocando o povo em lugar de escravo, de escravidão, até hoje. Muitos impostos para pagar. Quem trabalha muito e ganha dinheiro também tem um tributo, digamos assim, escravizador. E aquilo que deveria ser deslocado para melhorar as condições de outros seres humanos que não ganham melhor, não é. Ele é desviado. A gente vê que isso acontece nos pequenos grupos das famílias e também nos grandes grupos de governantes. E isso é algo muito preocupante na nossa sociedade. Isso é muito antigo, desde o início da civilização.”
No Mal-Estar da Civilização, Freud vai questionar o que podemos fazer para que isso melhore? E ele vai postular que a única forma de melhorar isso é com amor.
“Como que ele vai falar isso?” – nos pergunta a Dra. Elci. - “Bom, ele vai dizer que o que mantém os seres vivos é a fome, a necessidade de alimentação e o amor - no sentido platônico, como aquilo que você dá para o outro e que você não tem, mas o outro acredita que você pode dar. Então, fica aí essa reflexão.
CONCLUSÃo - O dilema do porco-espinho
“Um número de porcos-espinho se amontoaram buscando calor em um dia frio de inverno; mas, quando começaram a se machucar com seus espinhos, foram obrigados a se afastarem. No entanto, o frio fazia com que voltassem a se reunir, porém, se afastavam novamente. Depois de várias tentativas, perceberam que poderiam manter certa distância uns dos outros sem se dispersarem.
Do mesmo modo, as necessidades sociais, a solidão e a monotonia impulsionam os “homens porcos-espinho” a se reunirem, apenas para se repelirem devido às inúmeras características espinhosas e desagradáveis de suas naturezas. A distância moderada que os homens finalmente descobrem é a condição necessária para que a convivência seja tolerada; é o código de cortesia e boas maneiras. Aqueles que transgridem esse código são duramente advertidos, como se diz na Inglaterra: keep your distance! Com esse arranjo, a necessidade mútua de calor é apenas parcialmente satisfeita, mas pelo menos não se machucam.”
Até nosso próximo texto e para maiores informações e para ver o percurso completo, assine a plataforma ESPECast.
O que achou dessa matéria? Gostaria de continuar a estudar com o ESPEcast? Conheça nossa plataforma online dedicada à transmissão da psicanálise. São mais de 300 horas de cursos e conteúdos ligados ao campo da psicanálise, produzidos por pesquisadores(as) e analistas que são referência no Brasil e no mundo.
Transcrição e adaptação:
Gustavo Espeschit é psicanalista, professor e escritor. Pós-graduado em Fundamentos da Psicanálise: Teoria e Clínica pelo Instituto ESPE/UniFil e Pós-graduado em Clínica Psicanalítica Lacaniana pela mesma instituição. Formado em Letras Inglês/Português com pós-graduação em Filosofia e Metodologia do Ensino de Línguas.
Autoras do episódio:
Ane Patti: Graduada em Psicologia pela Universidade de Ribeirão Preto (2001), com Especialização em Psicanálise pela Universidade de Franca (2003) e Mestrado e Doutorado em Ciências, área Psicologia, pela FFCLRP-USP (2009 e 2014, com apoio FAPESP). Atua na clínica psicanalítica e em diversas atividades acadêmicas. É docente do curso de Psicologia do Centro Universitário Barão de Mauá e professora convidada nos cursos de Especialização em Psicanálise da Universidade de Franca e Pós-Graduação MBA GEP do Centro Universitário Moura Lacerda.
Elci Patti: Graduada em Psicologia pela UFMG (1977), com Mestrado e Doutorado em Serviço Social pela UNESP Franca (1998 e 2004). Foi docente e supervisora no curso de Psicologia até junho de 2018. Coordenou e lecionou nos cursos de Psicanálise e Pós-Graduação em Psicanálise com Criança na Universidade de Franca até 2020 e 2022, respectivamente. Atua como psicanalista em consultório particular e consultora educacional em escolas de Franca e região.
Comentários