Como se forma um psicanalista? Quem é praticante da psicanálise?
Uma pergunta que aparece bastante entre nós é quem é, afinal, psicanalista? Quem é praticante da psicanálise? Como se forma um psicanalista? Essas são as perguntas que o professor Daniel Omar Perez analisa no episódio #45 do ESPECast.
Em 1926, o psicanalista Theodor Reich foi denunciado em Viena e acusado de prática ilegal da medicina. Reich era praticante da psicanálise e não era médico. Em função disso, Sigmund Freud, pai da psicanálise, também residente de Viena e participante do Instituto Analítico de Viena, decide escrever um texto que foi traduzido como “A Questão da Análise Leiga” – ou “Análise Profana”, como referido no vídeo. Esse texto é justamente, de alguma forma, a resposta do inventor da psicanálise à questão de se a psicanálise era uma disciplina da medicina ou se a psicanálise era outro tipo de prática clínica, outro tipo de técnica, outro tipo de ciência. Este texto, que leva o subtítulo de “Diálogo com um Interlocutor imparcial” de algum modo, resgata a questão colocada para a acusação colocada para Theodor Reich e é um diálogo ficcional, com este interlocutor que interroga Freud e a psicanálise naquilo que seria a sua prática.
Imediatamente, Freud nos propõe que o analista não faz outra coisa que estabelecer um diálogo com o paciente e trata de colocar a psicanálise no terreno da palavra. Ele diz o seguinte:
“o analista não faz mais do que estabelecer um diálogo com o paciente, não usa instrumento, nem mesmo para reconhecer, nem receitar medicamento. Inclusive, se as circunstâncias o permitem, deixa o paciente dentro do círculo familiar, no meio familiar, enquanto dura o próprio tratamento. É uma condição que, de algum modo, precisa para a prática de determinados casos.” – transcrição da edição lida por Daniel no vídeo. E avança afirmando que: “o analista recebe também o paciente a uma hora determinada, deixa ele falar, escuta, e fala por sua vez, e se deixa também escutar. A partir daí, então, se desenvolveria a prática clínica.”.
Quer dizer, o psicanalista não receita medicamentos, o psicanalista não utiliza instrumentos, a não ser a própria palavra, a própria fala, conclui Daniel, ressaltando que o trabalho analítico, então, se dá no terreno da fala, no terreno da linguagem, no terreno da fala e da escuta.
QUAL É O LUGAR DA PSICANÁLISE E O QUE FAZ, EM DEFINITIVO, UM ANALISTA?
Daniel salienta que de alguma forma, também, o texto vai nos colocando alguns interrogantes a partir do lugar daquela pessoa imparcial que viria a questionar, qual é o lugar da psicanálise, e o que faz, em definitivo, um analista.
O interlocutor imparcial do texto interroga: “O senhor diz que você expõe uma nova psicologia.”, partindo do princípio que o próprio Freud coloca que a psicanálise não seria parte da medicina, senão que, de algum modo, uma nova psicologia. Daniel ressalta este ser um ponto importante porque o próprio interlocutor diz que a psicologia não é uma ciência nova, que seria uma ciência com uma tradição, destacando o adjetivo nova para dizer que a psicanálise não seria propriamente uma extensão da medicina, uma disciplina no interior da medicina, mas também não seria uma parte da psicologia, seria sim uma nova psicologia, uma psicanálise.
No texto, Freud, para responder a isso, diria, entre outras coisas, que a psicologia oficial não teria podido nunca indicar o sentido dos sonhos, estando aqui um ponto fundamental para a psicanálise freudiana, o trabalho sobre os sonhos.
O CURSO DE NOSSOS ESTUDOS ANALÍTICOS NOS TEM FORMADO A ESTRUTURA DE UM APARELHO PSÍQUICO.
Freud, para então responder àquela questão colocada para Reich, mostra qual seria a especificidade da psicanálise, na medida que vai expondo sua especificidade, diferenciando-a da medicina e tentando afastá-la da psicologia oficial, como diz ele, a partir de elementos específicos, como o aparelho anímico. Neste aparelho anímico, de alguma forma encontramos uma ficção, a partir da qual se abriria um campo de investigação e se possibilitaria, também, uma prática clínica.
Freud, para responder àquela questão colocada para Reich, mostra qual seria a especificidade da psicanálise, e na medida em que vai mostrando a especificidade da psicanálise, vai tentando diferenciar a psicanálise da medicina e também tentando diferenciar a psicanálise da psicologia, da psicologia oficial, como diz ele. A partir dos elementos específicos, o primeiro que Freud apresenta é o aparelho psíquico, onde, de alguma forma, encontraríamos uma ficção, a partir da qual se abriria um campo de investigação possibilitando também uma prática clínica.
Essa ficção é atribuída por Freud, no texto em questão, a Hans Vaihinger, um filósofo neokantiano da época que escreveu a “Filosofia do como se”. Essa filosofia resgata o elemento ficcional de origem de várias ciências, ao ponto que, de alguma forma, o filósofo vai nos mostrar que a ciência se origina em uma ficção. Freud acha interessante essa posição epistemológica do neokantiano e a assume como própria na psicanálise abrindo a possibilidade do aparelho psíquico ser o ponto de partida daquilo que viria a sustentar a experiência e a prática analítica e da psicanálise como campo de investigação. Em sequência Freud apresenta o que a psicanálise entende por Eu, o Supereu e o Isso, a sua segunda tópica.
Além disso, em sua argumentação Freud segue apresentando a questão do princípio do prazer e do princípio da realidade, mostrando que a psicanálise é uma prática que:
a) não médica;
b) não utiliza instrumentos;
c) se realiza no campo do discurso, da fala e da linguagem;
d) se utiliza da pessoa do analista, que se se coloca no lugar da escuta para fazer aparecer essa fala do paciente, estabelecendo um diálogo.
Essa experiência seria possibilitada por um conjunto de elementos que incluiria:
a) o aparelho psíquico, constituído do Eu, Supereu e o Isso;
b) O princípio do prazer;
c) O princípio da realidade.
Uma vez estabelecidos esses elementos, mais fácil seria desenhar os fins terapêuticos da psicanálise.
QUAL SERIA O FIM TERAPÊUTICO DA PSICANÁLISE?
Se já entendemos qual é o horizonte com que se faz a prática clínica e quais são os elementos fundamentais a partir dos quais essa prática clínica se realizaria, quais seriam os fins terapêuticos dessa prática? Freud escreve o seguinte: “Queremos reconstruir o Eu, libertá-lo de suas limitações e devolver o domínio sobre o isso perdido como consequência de suas passadas repressões.” Então aqui nós temos uma concepção de psicanálise que de algum modo vai mostrar um dos aspectos de seus fins terapêuticos. Freud está dizendo aqui que, de alguma forma, “é preciso restabelecer o domínio do eu sobre o isso a partir do trabalho sobre as repressões que o sujeito sofreu na sua vida e que de algum modo o fazem adoecer.”, nos explicita o professor Daniel no episódio.
E continua Daniel dizendo: “Este, e somente este, é o objetivo, o fim da análise, e toda a nossa técnica se encontra orientada nesse fim. De algum modo é preciso tentar fazer uma experiência que contribua à libertação da repressão do paciente. O praticante de psicanálise, disse Freud, tem, antes de mais nada, que ter estudado esta psicologia, a psicologia profunda, a psicologia do inconsciente e pelo menos conhecer o que se desenvolveu até este momento.”
Isso quer dizer que a prática da psicanálise exige mais do que o estudo da medicina ou o estudo da psicologia, exige o estudo da própria psicanálise. Freud avança nesse sentido dizendo que a causa das doenças nervosas são de algum modo vinculadas ou estabelecidas a partir de fatores da vida sexual e que esta tem um papel importantíssimo e muito específico: a experiência da vida sexual vai ser para a psicanálise determinante para a formação dos sintomas.
Se bem a psicanálise entende que a origem dos sintomas, os motivos da formação sintomática, estão em elementos da vida sexual, que de algum modo foram reprimidos, e em seu lugar se estabeleceu o sintoma, Freud destaca o seguinte em relação com o praticante de psicanálise:
“O analítico não atrai jamais o paciente para o terreno sexual nem mesmo adverte que haverá de tratar na análise esse tipo de intimidades. Deixa que comece suas comunicações de onde ele quiser e espera tranquilamente que de algum modo se aproxime, toque por si mesmo, esses temas sexuais.”
Ou seja, não se trata de induzir o paciente a vincular os sintomas de sua dor, de seu sofrimento, de seu mal estar, com elementos da vida sexual, ele mesmo vai fazer isso, como vemos desde a origem da psicanálise, nos Estudos sobre a Histeria, onde Freud descobre que as próprias pacientes estão vinculando sintomas histéricos com os temas da vida sexual. Não se trata, portanto, de uma indução, não se trata de uma sugestão, se trata, sim, de deixar falar o paciente para que ele produza suas próprias associações livres, que, de acordo com a teoria psicanalítica vão levar o sujeito, por si mesmo, à questão da vida sexual, que não seria, segundo Freud, apenas um tema problemático, complicado da vida cotidiana, mas também um grave problema científico.
Freud continua dizendo, nos ressalta o professor Daniel, que descobrimos nossos impulsos sexuais, que nos acompanham na vida desde o nascimento, e que as repressões são precisamente a arma defensiva utilizada pelo Eu contra os instintos. Daniel nos pontua que esse é um elemento interessante, argumentando que nós podemos pensar que a psicanálise entende que o aparelho psíquico funciona, em um de seus aspectos, a partir de impulsos sexuais. Que de algum modo podemos identificar como impulsos que aparecem no Isso e que são reprimidos pelo Eu a partir de mandatos superegóicos, mandatos sociais, culturais, conforme se pode ver no texto de 1923, “O Eu e o Isso”.
O corpo real de uma pessoa tem impulsos sexuais, tem impulsos de excitação do próprio corpo e de alguma forma a sociedade, ordenada normativamente através de regras, de regulamentos, de condicionamentos, impõe determinadas restrições e o Eu aparece então como uma formação que tenta negociar aquilo que é da ordem do convívio social, da normativa familiar, cultural, com aquilo que é da ordem do impulso sexual. Se torna aqui então imprescindível para a psicanálise abrir o campo de investigação científica no que diz respeito da vida sexual da criança, no sentido de que não se trata apenas de entender a vida sexual do adulto, mas de analisar, desde a origem, como o sujeito vai se constituindo a partir dessa relação entre impulsos sexuais e determinações normativas. Neste ponto apareceriam, segundo professor Daniel e seguindo o texto freudiano, a questão da repressão, que daria origem ao sofrimento, ao mal estar e aos sintomas.
Daniel segue citando Freud: “o estudo da sexualidade infantil e de suas transformações até a maturidade nos tem dado a chave das chamadas perversões sexuais descritas antes com todas as demonstrações de horror exigidas pelas conveniências mas cuja gênese ninguém podia explicar”. Assim somos remetidos a um texto fundamental da psicanálise: Três Ensaios para uma Teoria da Sexualidade.
CONCLUSÃO
Quem pode ser um psicanalista? Tudo isso então implica - conclui Daniel no episódio - que a pessoa que de algum modo se coloca como praticante de psicanálise precisa levar adiante um estudo da psicanálise, aberta pela hipótese do inconsciente, esse campo de investigação aberto pela primeira tópica, pela segunda tópica pela teoria da sexualidade, pelo princípio do prazer pelo princípio da realidade. Já não se trata mais de ter tido aulas de medicina ou de psicologia. De acordo com o próprio Freud, a pessoa que se coloca em lugar de praticante de psicanálise precisa estudar, além desta psicologia do inconsciente, história da civilização e mitologia e vai ainda afirmar que a formação médica universitária não proporciona meio algum, nem para o estudo e nem para o tratamento deste tipo de fenômeno. O que estaria em questão, então, é que a psicanálise se trata de um campo de prática e de investigação diferente do da medicina.
Quase ao final do texto em questão, Freud vai nos dizer, de acordo com o professor Daniel, que na formação do analista é preciso , além do aprofundamento do estudo na psicologia do inconsciente, que o interessado em seguir esta prática tenha uma introdução na biologia, tenha um conhecimento dos quadros patológicos da psiquiatria, mas que também se aprofunde e estude a história da civilização, estude mitologia, psicologia das religiões e literatura. Estes fatores tornam a formação em psicanálise uma formação diferente da formação médica e muito diferente da formação universitária como um todo. Essa formação não seria encontrada entre os acadêmicos universitários, mas sim, nos Institutos de Analíticos, como Freud nomeia.
É preciso então, que o praticante de psicanálise:
a) faça análise;
b) estude psicanálise, mas também estude tópicos como mitologia, história das religiões, história da humanidade e literatura, dentre outros tópicos.
Aquele que, como disse Lacan, pode se autorizar de si mesmo para se colocar na posição de analista é preciso que se empenhe e que estude. Assim, Daniel termina este episódio.
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Transcrição e adaptação:
Gustavo Espeschit é psicanalista, professor e escritor. Pós-graduado em Fundamentos da Psicanálise: Teoria e Clínica pelo Instituto ESPE/UniFil e Pós-graduado em Clínica Psicanalítica Lacaniana pela mesma instituição. Formado em Letras Inglês/Português com pós-graduação em Filosofia e Metodologia do Ensino de Línguas.
Autor do episódio: Daniel é psicanalista, pesquisador e professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutor e Mestre em Filosofia pela Unicamp, com pós-doutorado na Michigan State University nos EUA e em Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn na Alemanha. Autor de diversos livros de Filosofia e Psicanálise. Obteve o título de licenciado em filosofia em 1992 na Universidade Nacional de Rosario (Argentina). Publicou artigos científicos em revistas nacionais e internacionais, livros e capítulos de livros sobre filosofia e psicanálise.
Textos citados neste episódio:
A Questão da Análise Leiga - Sigmund Freud
Três Ensaios para uma teoria da Sexualidade – Sigmund Freud
A Filosofia do Como Se - Hans Vaihinger
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