Considerações de Robert Burton
Na plataforma ESPECast, encontramos um percurso, conduzido pelo professor Daniel Omar Perez, que se intitula “Dicionário da Psicanálise.” Nele o professor discorre sobre conceitos importantes, tais como Histeria, Obsessão, Medo, Sadismo, Masoquismo, dentre outros.
Um desses outros tópicos é a melancolia. O que é? Onde se origina? Como é tratada na literatura? E na psicanálise?
O artigo de hoje é uma introdução ao tema, conforme exposto pelo professor no verbete Melancolia. O professor vai apresentar alguns aspectos da melancolia como apresentados pelo inglês Robert Burton em sua série de livros “A Anatomia da Melancolia.”
Boa leitura.
Introdução
O termo melancolia é um termo que aparece nos textos Homéricos, nos textos do Pentateuco – que são os cinco primeiros livros da Bíblia. -, da Torá, do Antigo Testamento. Se desenvolve na filosofia da Grécia e do Império Romano, atravessa a época do feudalismo europeu e continua com o projeto da ciência e da filosofia europeia moderna.
Nesse percurso, o termo melancolia - ou aquilo que podemos chamar de melancolia- tem diferentes conotações até chegar a Freud. “Portanto, podemos dizer que há um momento pré-freudiano daquilo que se refere à melancolia e um momento freudiano da melancolia.” – nos conta Daniel.
A melancolia aparece vinculada à ideia de bílis negra nos textos hipocráticos. “Lembremos isto que é muito importante: os textos hipocráticos, o corpus hipocrático, são um conjunto de textos, alguns deles escritos por Hipócrates, outros escritos pelos médicos que trabalhavam junto com Hipócrates. Naquela época não havia uma grande preocupação, podemos dizer assim, com os direitos autorais, com o copyright dos textos.” – diz Daniel.
Os textos hipocráticos, então, compunham um conjunto de elementos para a prática médica da época. Neste contexto aparece a “bílis negra” como elemento, como substância viscosa, tenebrosa, ligada literalmente, ao que podemos chamar de melancolia.
Conta o professor Daniel:
“Aparecem elementos, e é aí que está o ponto, aparecem elementos na Odisseia, aparecem elementos também na Bíblia, que tem a ver com a tristeza, com a morbidez, com o ambiente da “pesadumbre”, que poderíamos dizer que descrevem um cenário melancólico, por chamar de alguma forma. Mas, em termos médicos, isso aparece com Hipócrates. Vejam só, é um tipo de situação, circunstância, um conjunto de sintomas que aparecem com Hipócrates. E dizem a respeito, então, a melancolia estaria associada a “bílis negra.”
Os sintomas dessa substância atuando no corpo produziria, por exemplo, a epilepsia; a mania – entendida como uma loucura agressiva -; tristeza; lesões na pele, dentre outras coisas. Provocaria também insônia, fazendo o sujeito trocar o dia pela noite, não permitindo que ele consiga dormir de modo tranquilo.
No corpus hipocrático também surge a referência a uma cor escura no baço, associada a “bílis negra”. Ou seja, a melancolia teria, portanto, uma causa endógena e essa causa estaria associada à viscosidade do sangue e à impossibilidade de circulação dos fluidos pelo corpo.
A teoria dos humores
Há uma teoria dos humores que sustenta isso. Essa teoria aparece, segundo os historiadores, pela primeira vez com Políbio de Cos, genro de Hipócrates, que escreveu o Tratado da Natureza do Homem, onde aparecem então os quatro humores, que mais tarde serão explorados por Galeno, se estendendo até o século XIX até a época de Cesare Lombroso, considerado o pai da criminologia. Lombroso classificava a periculosidade dos sujeitos a partir de um fenótipo, ou seja, de acordo com o rosto do dele. “De acordo com a cara você era mais ou menos trabalhador, mais ou menos criminoso, mais ou menos delinquente.” – |nas palavras do professor Daniel. Ele então cria um quadro com quatros santos, que se referiam aos quatro humores.
“É uma teoria que - na história da medicina - se estende desde o século IV a.C., III a.C., até o século XIX, praticamente. Kant cita a teoria dos humores em seus trabalhos, que são do final do século XVIII. Então é a partir da teoria dos humores que nós vemos aparecer associada à questão da melancolia.” – conforme o professor Daniel.
Tratamentos da Melancolia
Há diferentes formas de medicação para curar a melancolia.
Os textos hipocráticos sugerem a mandrágora – uma planta que possui uma substância sedativa. A terapêutica utilizaria o método da anestesia com a utilização de substâncias opiáceas como forma de provocar algum efeito de calma, de diminuição de tensões.
Há uma terapêutica proposta por Celsus que, podemos dizer, é uma terapêutica psiquiátrica. Ele dizia que era preciso afastar o doente de toda causa de pavor.
Professor Daniel cita Celsus no episódio: “Tentar-se-a distraí-lo com diferentes histórias e jogos que mais lhe agradem em estado de saúde. As suas obras, se as faz, serão elogiadas com complacência e lhes serão recolocados diante dos olhos. Suas tristes imaginações serão combatidas por doces admoestações, fazendo-o sentir que as coisas que o atormentam, ele deveria encontrar um motivo mais encorajante do que de inquietação.”
Assim, portanto, o tratamento da melancolia, já que ela estava baseada em elementos endógenos, deveria ser realizado através de medicamentos, mas também com uma terapêutica, que consistiria em afastar o sujeito do pavor.
Sorano de Éfeso, outro pensador da melancolia citado por Daniel, diz que a causa real da melancolia seria um estado de grande estrição das fibras. Os seus principais sintomas seriam o abatimento, o pesadume, a tristeza silenciosa, além de quadros de ansiedade. Há, em geral, um desconforto muito grande.
Arteu da Capadócia também trata de uma terapêutica da melancolia onde propõe banhos: banhos de betume, de enxofre, de alume, dentre outros.
“É interessante tudo isso porque, se há uma ideia de que a bílis negra estaria sobre a base do movimento dos fluidos no corpo, e que isso, de algum modo, afetaria o baço, e que isso, de algum modo, afetaria também o pensamento do sujeito, ou seja, tem uma causa biológica que desencadeia pensamentos ruins, deve ser tratada com medicamentos anestésicos, opióides, deve ser tratada com uma terapia lúdica, com atividades, e deve ser tratada com banhos. Isto é na Antiguidade. ” – nas palavras de Daniel.
Isso tudo se reelabora constantemente até o final do século XVIII, XIX. “Inclusive na própria época de Freud.” – aponta o professor - “Na própria época de Freud, o psicótico maníaco depressivo, que poderíamos pensar em uma melancolia. A melancolia, às vezes, é descrita como uma loucura dupla - por momentos depressivos, por momentos maníacos. A loucura maníaco depressiva - psicótica maníaca depressiva - que era uma espécie de psicótica precoce - era tratada com banhos, com calmantes, com dietas, da mesma forma que era tratada na Antiguidade. E é interessante, nós vamos ver que a melancolia vai passando pela época, pela Idade Antiga, a Grécia - pelo menos na história da Europa - a Grécia, a época medieval, o Renascimento, a época moderna, e em cada lugar vai tendo uma conotação diferente, cada momento vai tendo uma conotação diferente. ” - completa o professor.
Anatomia da Melancolia de Robert Burton
Para um estudo mais aprofundado das diferentes classificações, das causas, dos modos de tratamento da melancolia, o professor Daniel indica a série de livros “A Anatomia da Melancolia”, de Robert Burton. Quatro volumes extensos, publicados em 1615, onde se pode encontrar, como diz o professor Daniel, “quase tudo” que pode ser encontrado sobre a melancolia, desde os textos Homéricos e da Torá, até 1600 na Europa.
Depois disso, nós temos alguns elementos históricos que podemos encontrar em outros textos, aqui publicados em Brasil, inclusive, mas que estão associados à ideia de depressão.
“Eu não sei se a ideia de depressão se vincula exatamente com melancolia. A princípio, me parece que não. Nós poderíamos, inclusive, investigar o que é a depressão no DSM-5. E nós vamos ver que a depressão no DSM-5 é muito mais ampla do que poderíamos chegar a entender por melancolia.” – pontua o professor Daniel, acrescentando – “Agora, o termo melancolia é um termo bastante plástico, é um termo quase ficcional, porque vai significando diferentes coisas em diferentes momentos da história e em diferentes lugares. Portanto, parece que não se refere ao mesmo fenômeno.”
O primeiro volume da série é uma espécie de introdução ao tema. O professor Daniel nos convida a ler alguns trechos deste volume, em especial um que descreve o momento no qual o autor está vivendo.
“Vejam o que Robert Burton escreve, em sua casa, no ano de 1600.” – nos convida o professor. Abaixo uma transcrição do trecho, como lido por ele no episódio:
“Ouço novas novidades todos os dias, e aquele rumor irregular de guerra, pragas, incêndios, inundações, roubos, homicídios, massacres, meteoros, cometas, espectros, prodígios de aparições, cidades tomadas, cidades situadas na França, na Alemanha, na Turquia, na Pérsia, na Polônia, etc. Assembleias e preparações diárias e coisas do gênero que esses tempos tempestuosos nos apresentam: batalhas travadas, , tantos homens mortos, duelos, naufrágios, piratarias e batalhas navais, paz, ligas, estratagemas e novos alarmes.
Uma vasta confusão de votos, vontades, ações, editos, petições, litígios, pleitos, leis, proclamações, reclamações e injúrias chegam diariamente aos nossos ouvidos. Nossos novos livros, todos os dias, panfletos, jornais, histórias, catálogos imensos com volumes de todos os tipos, novos paradoxos, opiniões, cismas, heresias, controvérsias na filosofia, na religião, etc. Ora vem notícias de casórios, fantasias, mascaradas, diversões, jubileus, embaixadas, tendas e torneios, troféus, triunfos, pendengas, esportes e peças. E, novamente, como em cena transmutada: traições, trapaças, furtos, enormes vilanias para todos os gostos, funerais, enterros, óbitos de príncipes, novas descobertas, expedições, assuntos, ora cômicos, ora trágicos. Hoje ouvimos, de novo, títulos de cargos criados, depois de poderosos depostos e, novamente, de outras honras conferidas. Um é liberto, o outro aprisionado, um enriquece, o outro quebra, este prospera e seu vizinho está falindo.
Ora fortuna, ora carestia e fome. Um corre, o outro cavalga, combate, ri, chora, etc. Isso eu ouço a cada dia. E, outro tanto, notícias públicas e privadas, entre a galanteria e a miséria do mundo, jovialidade e orgulho, perplexidades e preocupações, simplicidade e vilania, sutileza, patifaria, candor, integridade, mutuamente misturados e ofertados.”
Ao terminar de ler o trecho, o professor reflete que este texto lhe soa como uma voragem, ou seja, como algo que é capaz de destruir com violência. Diz o professor: “Parece como que, de alguma forma, nosso Robert Barton está, eu diria, atordoado por toda essa carga de informações e de coisas. O mundo, para ele, se apresenta como uma quantidade de informações que o deixam perplexo. E o deixam perplexo porque aparecem como sem sentido. Parece que nada faz sentido e, ao mesmo tempo, há uma ebulição de fatos, fenômenos, debates, controvérsias. Parece que esse é o mundo de Robert Barton. E Robert Burton se considerava um melancólico. Então, pareceria como que o melancólico é alguém que descobre o absurdo da vida.” – diz Daniel, reflexivo.
O melancólico como alguém que descobre o absurdo da vida. Barton descobre o absurdo da vida e fica melancólico. Os sintomas da melancolia começam a surgir. Assim, Burton propõe dois paradigmas, duas perspectivas diante do absurdo.
Acompanhemos outro trecho do livro, como lido pelo professor:
“O filósofo Heráclito, depois de uma profunda meditação sobre a vida humana, prostrou-se a chorar com lágrimas contínuas. Deplorou sua miséria, loucura e sandice.”
As lágrimas então de Heráclito representariam esse estado melancólico diante do mundo.
“Demócrito, por outro lado, caiu no riso. Toda a vida lhe parecia tão ridícula e ele estava tão arrebatado por essa paixão irônica que os cidadãos de Abdera tomaram por louco e enviaram embaixadores ao médico Hipócrates para que este exercesse sua perícia sobre aquele.” – segue Daniel citando Robert Burton.
Diante do absurdo do mundo temos tanto as lágrimas de Heráclito quanto a risada de Demócrito. Por isso pode ser interessante pensar que a melancolia pode apresentar traços de tristeza, de pesadume, mas também pode ser manifestada em forma de ironia. “Talvez o sarcasmo e a ironia sejam índices de melancolia” – sugere Daniel.
Robert Burton também se pergunta: Até que ponto se pode rir do absurdo da vida? Até que ponto se pode exercer a ironia e o sarcasmo de Demócrito? E o professor termina lendo mais um trecho do volume 1.
CONCLUSÃo
Em Anatomia da Melancolia, Burton entende que a origem da melancolia está no absurdo do mundo. Uma concepção renascentista. Uma leitura que ele faz de sua época presente e da época passada, de Demócrito e Heráclito.
Quer saber mais sobre a melancolia?
O professor Daniel segue explorando o tema no verbete “Melancolia” do percurso Dicionário da Psicanálise, disponível na plataforma ESPECast. Assine e tenha acesso a esse e a outros conteúdos incríveis na área de filosofia e psicanálise.
Até nosso próximo artigo.
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Transcrição e adaptação:
Gustavo Espeschit é psicanalista, professor e escritor. Pós-graduado em Fundamentos da Psicanálise: Teoria e Clínica pelo Instituto ESPE/UniFil e Pós-graduado em Clínica Psicanalítica Lacaniana pela mesma instituição. Formado em Letras Inglês/Português com pós-graduação em Filosofia e Metodologia do Ensino de Línguas.
Autor do episódio: Daniel é psicanalista, pesquisador e professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutor e Mestre em Filosofia pela Unicamp, com pós-doutorado na Michigan State University nos EUA e em Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn na Alemanha. Autor de diversos livros de Filosofia e Psicanálise. Obteve o título de licenciado em filosofia em 1992 na Universidade Nacional de Rosario (Argentina). Publicou artigos científicos em revistas nacionais e internacionais, livros e capítulos de livros sobre filosofia e psicanálise.
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