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A carta roubada: o sujeito como efeito de linguagem

Atualizado: há 2 dias


“E se tivermos êxito, e se for apropriado, estes são pensamentos.”

(Jacques Lacan, 1966)


É com essa nota inaugural que Lacan abre seu seminário sobre A carta roubada, primeiro texto de seus Escritos — e não por acaso. 


A escolha do conto de Edgar Allan Poe (1844) como ponto de partida de sua investigação não caminha em uma interpretação literária, mas na exposição de uma estrutura: aquela que organiza a posição do sujeito a partir da cadeia significante. 


O que se lê no conto não é o drama da carta perdida, mas o trajeto de um objeto simbólico que, ao se deslocar de mão em mão, organiza lugares de saber


A carta é o significante em movimento; ela permite revelar que o sujeito não é uma substância nem uma essência, mas um efeito — um produto — da ordem simbólica. 


O artigo parte dessa leitura para sustentar essa hipótese: o sujeito, tal como concebido pela psicanálise lacaniana, não é origem, mas efeito. Efeito de uma linguagem que o antecede, de uma cadeia de significantes que o inscreve e o determina em sua fala, sua posição e, por que não, seu sintoma. 


Assim como enfatiza o professor Daniel Omar Perez, não é o sujeito que fala, e sim, ele é falado pelo discurso do Outro.


Vamos explorar como a lógica significante estrutura o sujeito, articulando os elementos do simbólico, do olhar, da linguagem e da repetição.


Boa leitura!



A linguagem não é um instrumento

O sujeito não nasce com a linguagem — ele nasce na linguagem. Essa inversão, aparentemente simples, é um dos pontos mais radicais do ensino de Lacan. 


“Somos falados”, lembra Daniel Omar Perez, e essa fórmula condensa um deslocamento fundamental: a linguagem não é um instrumento que o sujeito domina, mas um campo estruturado que o precede e o determina.


Essa determinação se dá pela cadeia significante, estrutura que inscreve o sujeito como efeito, e não como origem. 


O significante, longe de carregar um sentido estável, funciona por diferenças: ele só tem valor em relação a outro significante. 


É nesse deslizamento incessante que o sujeito aparece — não como mestre de sua fala, mas como fenda, intervalo, quociente dessa articulação.


É por isso que Lacan afirma que o sujeito do inconsciente está “fora de lugar”, situado num ponto excêntrico à cadeia que o constitui. 


Esse deslocamento é o que ele nomeia como ex-sistência — não se trata de uma exterioridade espacial, mas estrutural: o sujeito é efetivamente produzido pela estrutura, mas não coincide com ela. Ele aparece como um efeito daquilo que insiste: a repetição do significante.


As repercussões clínicas dessa ideia são fundamentais. Quando o analisante fala, ele acredita contar sua história, organizar suas lembranças, dar sentido ao que viveu. 


No entanto, é justamente no ponto em que sua fala escapa, tropeça ou se repete que o analista escuta, porque é aí que se manifesta algo que o sujeito não sabe sobre si, mas que insiste como um traço da cadeia simbólica. 


O analisante fala, mas é falado. E é na escuta desse dizer que se localiza o trabalho analítico. Esse movimento nos leva ao próximo eixo: a repetição não como escolha consciente ou lembrança voluntária, mas como efeito do automatismo significante.



O automatismo de repetição como efeito da cadeia significante

Ao voltar à Freud, Lacan resgata a noção de repetição não como retorno do mesmo no plano consciente, mas como insistência de uma estrutura simbólica que foge à vontade do sujeito


Na Carta roubada, como na clínica, não é a lembrança do que se perdeu que importa, mas o trajeto do que retorna, ainda que sob outras formas. O que se repete não é um conteúdo psíquico conservado na memória, mas o efeito de um funcionamento da cadeia significante.


Freud, no texto Além do princípio do prazer (1920), confronta o fenômeno da repetição como um paradoxo clínico: por que o sujeito retorna justamente ao que lhe causa sofrimento? 


A resposta que emerge, e que será radicalizada por Lacan, é que a repetição não é motivada por um desejo consciente ou por uma busca de sentido, mas por uma compulsão que se inscreve no nível do inconsciente. Lacan nomeia isso de automatismo de repetição (Wiederholungszwang), conectando-o diretamente à estrutura da linguagem.


A repetição na psicanálise lacaniana aponta para um retorno real, estruturado, que institui a diferença, ainda que sob a aparência do mesmo. Nesse sentido, Freud mostra que o sujeito não se lembra, ele repete — e Lacan vai ainda mais longe: o sujeito é repetido. Não se trata de um agente que repete, mas de um efeito que se dá como repetição.


Este é o ponto, o significante ganha centralidade. Lacan afirma que o significante é aquilo que representa um sujeito para outro significante. Quando algo retorna na fala do analisante — uma palavra, um tropeço, um equívoco —, isso aponta para a lógica de uma cadeia que o excede. 


O recalcado não retorna como lembrança plena, mas como um traço deslocado, condensado, como resto que insiste. Na clínica, isso exige um tipo específico de escuta. Não se trata de buscar a verdade por detrás do que é dito, mas de atentar ao que se repete


O analista, aqui, não interpreta o sentido oculto, mas sustenta um lugar em que a estrutura possa se desdobrar e, eventualmente, se deslocar. A repetição, nesse sentido, é o material mais precioso da análise, pois é por meio dela que o sujeito se mostra como efeito e não como causa.


Essa lógica da repetição como efeito do significante encontra, no conto de Edgar Allan Poe, uma dramatização precisa. É a carta, enquanto significante, que produz os lugares e determina as posições dos sujeitos.



A carta como operador simbólico

O conto A carta roubada, de Edgar Allan Poe, narra uma intriga aparentemente simples: uma carta comprometedora é subtraída dos aposentos da Rainha por um Ministro, diante do olhar atento da própria Rainha, mas sob a cegueira do Rei. 


O Ministro aproveita-se dessa cena ambígua para trocar a carta por outra e, assim, usá-la para fins ilícitos. O delegado de polícia, chamado para recuperar o documento, revira a casa do Ministro durante meses sem sucesso. 


É o detetive Dupin quem, ao visitar o local, percebe que a carta está justamente à vista — disfarçada como um bilhete comum, em cima da lareira. Dupin a recolhe discretamente, deixando uma carta falsa em seu lugar.


Lacan propõe que o que se joga no conto é uma estrutura de lugares. Esses lugares são definidos por uma lógica de visibilidade e invisibilidade, mas também por sua posição na cadeia simbólica. 


A circulação da carta permite ler três cenas, em que o sujeito se constitui como efeito da posição que ocupa nesse jogo de olhares:


  1. A Rainha — É a primeira a ser surpreendida. Ela possui a carta (o significante), mas perde sua posse ao ser vista. A presença do Rei a impede de reagir. Aqui, a cena é estruturada pela presença de um terceiro. A Rainha vê que é vista, e é capturada no olhar do outro.


  2. O Ministro D. — Ele toma a carta sem subterfúgios: não a esconde, apenas a desloca. Sua força simbólica reside no fato de compreender o funcionamento da cena: sabe que a Rainha não poderá reagir. Ao deter a carta, o Ministro passa a comandar a cena, mas também se expõe a ser visto.


  3. Dupin — Diferente da polícia, que busca a carta onde ela “deveria” estar, Dupin busca a posição. Ao trocar a carta por outra, ele não apenas rompe a repetição, mas reposiciona o significante e, com isso, toda a cadeia de lugares. Ele não representa o saber, mas opera o corte.


Essa releitura dos olhares, como posições estruturais e não como pontos de vista psicológicos, nos permite entender a carta como operador simbólico


Ela não pertence a ninguém; ao contrário, é ela que organiza a rede de relações. A carta é um significante que não revela um conteúdo oculto, mas produz efeitos: reposiciona sujeitos, distribui papéis, instala uma lógica de alienação e saber.


Se no conto a carta estrutura os lugares da cena, na análise é o discurso que estrutura o sujeito. É o que se repete na fala do analisante que revela seu lugar na cadeia simbólica, e, com isso, sua posição frente ao desejo, à fantasia e ao real.


Clínica e ética da posição analítica

Na clínica lacaniana, o analista não interpreta conteúdos nem oferece sentidos ao que é dito. Sua função é estrutural: operar cortes na cadeia significante.


Podemos fazer uma aproximação da figura de Dupin, no conto de Poe, do lugar do analista. O detetive não busca o conteúdo da carta, mas percebe sua função simbólica e a reposiciona, realizando um gesto que rompe a repetição. 


O analista age do mesmo modo: não ocupa o lugar do saber, mas sustenta o vazio estruturante que permite ao sujeito se deslocar em relação à cadeia que o determina. O pagamento, nesse contexto, marca a operação simbólica, e não uma troca de serviços.


Essa posição ética distingue radicalmente a psicanálise das práticas de adaptação do ego, voltadas ao alívio ou à terapêutica do eu. A psicanálise não busca conforto, mas confrontação com o desejo e com o real. Ao escutar a repetição, o analista não conduz o sujeito ao sentido, mas o acompanha em sua travessia que sustenta o sintoma.


O lugar do analista é, portanto, o de operador da estrutura. Ele não orienta, não dirige, ele sustenta a cena em que algo pode se deslocar. Sua escuta, atenta ao significante e à repetição, permite que o sujeito se depare com aquilo que o constitui, e, talvez, invente uma nova posição diante disso.



Considerações finais

Ao longo deste artigo, acompanhamos a tese central da leitura lacaniana do conto A carta roubada: o sujeito não é origem, mas efeito


Ele não fala a partir de um núcleo essencial, mas se constitui como resposta de uma estrutura significante que o antecede e o atravessa. 


É nessa lógica que se inscreve a repetição: não como falha de memória ou escolha inconsciente, mas como insistência de uma cadeia que retorna.


O trabalho do professor Daniel Omar Perez, quinzenalmente, no percurso Ditos e Escritos de Jacques Lacan, ao vivo para assinantes, nos oferece uma leitura viva e precisa de Lacan. Sua transmissão destaca não apenas a teórica, mas também o rigor ético implicado na posição analítica. 


Ao enfatizar que "não é o sujeito que fala, mas é falado pelo discurso do Outro", Daniel nos ajuda a recentrar a prática clínica em torno da linguagem, da estrutura e daquilo que, como resto, insiste na fala.

Por fim, reafirmamos que a função do analista não é a de interpretar ou adaptar, mas a de sustentar o lugar da falta. É nessa aposta que a clínica lacaniana se diferencia: ela não promete completude, mas cria as condições para que algo do real seja simbolizado, ou, ao menos, escutado.


Se esses foram pensamentos, como anuncia Lacan, é porque sustentaram, no vazio da linguagem, a emergência de um sujeito não como essência, mas como efeito.



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REFERÊNCIAS:

  • LACAN, Jacques.Escritos (1966).Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

  • LACAN, Jacques.O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964).Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Marcelo Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

  • FREUD, Sigmund.Além do princípio do prazer (1920).Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

  • POE, Edgar Allan.A carta roubada (1844).Histórias extraordinárias. Tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.


Transcrição e adaptação:

Renata Suhett é jornalista, especialista em marketing, escrita e mídias sociais. Formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário de Barra Mansa - RJ.


Autor do episódio:

Daniel é psicanalista, pesquisador e professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutor e Mestre em Filosofia pela Unicamp, com pós-doutorado na Michigan State University nos EUA e em Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn na Alemanha. Autor de diversos livros de Filosofia e Psicanálise. Obteve o título de licenciado em filosofia em 1992 na Universidade Nacional de Rosario (Argentina). Publicou artigos científicos em revistas nacionais e internacionais, livros e capítulos de livros sobre filosofia e psicanálise.




 
 
 

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