Direção de Tratamento das Psicoses: O Lugar do Analista e as Formas de Estabilização
- ESPEcast
- 7 de nov.
- 6 min de leitura
As psicoses ocupam, desde Freud, um lugar fundamental na construção da clínica psicanalítica. Pensar a direção do tratamento nessa estrutura implica interrogar a própria função do analista, especialmente diante de um sujeito cuja relação com o simbólico e com o Outro não se organiza da mesma maneira que na neurose.
Em Freud, o estudo das psicoses abre uma reflexão sobre os limites da transferência, uma vez que o sujeito psicótico não se estrutura em torno da falta simbólica nem da suposição de saber dirigida ao analista.
Com Lacan, a psicose ganha uma nova formulação: ela é pensada como o efeito da foraclusão do Nome-do-Pai, ou seja, da ausência de um significante que assegure a inscrição do sujeito no campo simbólico. Refletir sobre a direção do tratamento sob essa perspectiva estrutural exige uma escuta específica.
O propósito deste artigo não é traçar um protocolo ou indicar um caminho único, mas apresentar algumas formulações teóricas que podem orientar a prática, preservando o princípio fundamental de que cada analista constrói sua própria clínica, segundo a ética que sustenta a psicanálise.
Boa leitura!
Estrutura Psicótica e Suas Particularidades
A psicose, na perspectiva psicanalítica, representa uma organização subjetiva distinta da neurose. Para Freud, enquanto a neurose se estrutura em torno do conflito entre o Eu e os impulsos internos (o Isso), na psicose a perturbação principal se dá entre o Eu e o mundo externo.
Lacan retomou e ampliou as ideias freudianas, formulando a psicose como efeito da foraclusão do Nome-do-Pai. Essa ausência de um significante que confere estrutura à psique não exclui o sujeito da linguagem; pelo contrário, coloca-o diante de uma fala sem amarra simbólica.
Quem explica bem essa passagem é Colette Soler, em As lições das psicoses:
“Lacan diz que o psicótico escapa às limitações do discurso. O resultado dessa limitação manifesta-se nisto: as palavras do sujeito não são aleatórias. As palavras têm lastro.”
“É o fora de discurso psicótico que condiciona sua dita liberdade. A liberdade do sujeito psicótico é a liberdade de um sujeito fora do discurso, mas não fora da linguagem. Fora do discurso como ordem do laço social.”
Mais adiante, Lacan introduz o conceito de sinthoma, evidenciando que o sujeito pode encontrar maneiras singulares de se estabilizar. Exemplos como o do escritor James Joyce mostram que a psicose não necessariamente é sinônimo de colapso: o sujeito pode criar soluções próprias que lhe permitem viver e se organizar.
O Manejo Clínico e a Função da Transferência nas Psicoses
Na clínica das psicoses, a transferência não se organiza como na neurose, em que o sujeito supõe que o analista detém saber sobre seu sofrimento. Nesse campo, o analista não é investido como detentor de respostas. Esse tipo de transferência exige um manejo clínico distinto.
Como aponta a psicanalista Francis Juliana Fontana, “a transferência continua sendo a mola mestra na clínica não neurótica”, mas sua forma e seus efeitos são outros. O manejo clínico com sujeitos psicóticos demanda do analista uma escuta que não busque interpretar, mas sustentar — sustentar o laço, o dizer, o modo singular com que o sujeito tenta se unir à realidade.
A escuta na psicose deve ser paciente e ética, mantendo a atenção às manifestações de delírio sem reforçá-las, oferecendo uma borda para que o sujeito construa seus próprios arranjos de estabilidade. O que na neurose é da ordem da interpretação, na psicose se trata de acompanhar os movimentos de sentido do sujeito, acolhendo suas elaborações ainda que fragmentárias.
Como observa Juliana Fontana, pacientes psicóticos frequentemente enfrentam internações curtas, altas rápidas e reinternações frequentes. Nessas situações, o analista precisa valorizar a continuidade e a presença, criando espaços que permitam ao sujeito reorganizar-se, e evitando a repetição de rupturas que agravam o sofrimento.
Assim, o tempo do analista se alinha ao tempo do sujeito, que pode ser lento, imprevisível ou interrompido por crises. A função clínica, aqui, é oferecer uma presença ética e constante, permitindo que o sujeito experimente formas de estabilidade própria e construa inventivamente modos de existir, sem jamais impor normas ou expectativas.
O Lugar do Analista na Clínica das Psicoses
Na neurose, o analista ocupa o lugar do Sujeito Suposto Saber, posição sustentada pela transferência. O paciente aposta que o analista sabe algo sobre o seu sofrimento, e é essa suposição que faz o tratamento avançar.
Na psicose, porém, essa dinâmica não se estabelece da mesma forma. O sujeito encontra dificuldade em se inscrever simbolicamente, o que afeta o vínculo com a realidade e a maneira como a transferência se apresenta.
Como explica Juliana Fontana, o trabalho com a psicose requer acolhimento e cuidado. O analista não deve interpretar nem tentar ocupar o lugar do delírio — seja ele erotomaníaco ou persecutório —, mas sustentar um espaço de laço possível.
O manejo clínico, portanto, se apoia numa ética da presença e continuidade, que oferece suporte simbólico ao sujeito. Trata-se menos de decifrar e mais de acompanhar, ajudando o paciente a construir modos singulares de enlaçamento com o mundo e com o outro.
Formas de Estabilização
Lacan, ao longo de seu ensino, mostrou que o paciente pode inventar soluções próprias para lidar com a foraclusão do Nome-do-Pai. Essas invenções podem funcionar como sinthomas, amarrações singulares que permitem ao sujeito sustentar o corpo, a fala e a relação com o real.
O caso de James Joyce é exemplar: sua escrita operava como substituição do Nome-do-Pai, permitindo-lhe uma estabilização sem recurso ao delírio. Essa ideia abre um campo clínico, o de que a psicose não é necessariamente sinônimo de colapso, mas pode encontrar vias criativas e simbólicas de organização.
O analista acompanha e legitima as soluções criadas pelo sujeito, por mais singulares que sejam. O que se busca não é a normalização, mas a sustentação de um modo particular de existir, inventado a partir da própria estrutura do sujeito.
Considerações Éticas e a Direção do Tratamento
Por mais óbvio que pareça, pensar a direção do tratamento das psicoses é, antes de tudo, pensar uma ética da escuta.
Nessa clínica, o analista não conduz o sujeito a uma suposta normalidade nem busca restituir uma falta que já sabemos ser estrutural. Sua tarefa é mais discreta e, ao mesmo tempo, mais radical: sustentar a possibilidade de laço, mesmo onde o discurso se rompe.
A ética que orienta essa prática é a de respeitar a singularidade do sujeito e suas invenções de existência. Isso implica reconhecer que cada estabilização é única — uma solução inventada ali onde o simbólico falhou. O analista não interpreta o delírio, não corrige o sentido, mas se coloca como presença que permite que algo do sujeito persista.
Assim, a direção do tratamento nas psicoses não se mede por avanços ou “curas”, mas pela possibilidade de habitar o laço social de um modo menos doloroso. Manter essa aposta — mesmo diante do impossível — é, em última instância, o gesto ético que sustenta a clínica psicanalítica das psicoses.
Indicação de leitura
Recomenda-se a obra As lições das psicoses: Conferências, de Colette Soler, que reúne três conferências proferidas no Hospital José T. Borda, na Argentina, entre 2004, 2011 e 2013.
Soler percorre a evolução do conceito do Nome do Pai, desde a metáfora paterna até o dizer que nomeia, e retoma a noção lacaniana de “sentimento da vida”.
O livro é um convite a reflexão sobre como as psicoses ensinam aos psicanalistas, testemunhando a experiência clínica de forma clara e com a satisfação de compartilhar conhecimento sobre sujeitos que não retrocedem diante da psicose.
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Transcrição e adaptação:
Renata Suhett é jornalista, especialista em marketing, escrita e mídias sociais. Formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário de Barra Mansa - RJ.