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Do Schreck ao Unheimliche: uma leitura psicanalítica do susto no cinema


O campo dos afetos ocupa um lugar central na psicanálise freudiana, e isso nos permite estabelecer uma correlação entre a psicanálise e o cinema — entendido, assim como a literatura ou a pintura, como um modo de arte capaz de dar forma ao inconsciente. O cinema, por produzir efeitos sensoriais e emocionais, torna-se um espaço privilegiado para observar os fenômenos psíquicos que atravessam a experiência humana.


A articulação entre psicanálise e cinema de terror possibilita pensar o modo como o sujeito se confronta com o inesperado, o ameaçador e o estranho, aquilo que Freud denominou das Unheimliche (o inquietante) em 1919. Trata-se de uma experiência na qual o familiar se torna estranho, e o estranho, por sua vez, revela algo inquietantemente familiar.


Na plataforma ESPEcast, o psicanalista Ferdinando Zapparoli conduz mensalmente o programa “Boa Noite, Psicanálise”, um encontro leve que apresenta curiosidades da teoria psicanalítica por meio da análise de filmes e séries. Essa iniciativa ilustra de modo criativo como o cinema pode servir de via de acesso à reflexão sobre o inconsciente.


O gênero do terror, em particular, convoca o espectador a confrontar seus próprios limites de percepção e tolerância ao medo, organizando uma dinâmica entre o prazer e o desprazer que é, em muitos aspectos, análoga ao funcionamento do inconsciente. O prazer de assistir ao que nos ameaça é, ele próprio, um enigma psíquico que o cinema explora com maestria.


Nesse contexto, o conceito freudiano de Schreckaffekt, formulado por Freud em Além do princípio do prazer (1920) — o afeto do susto, ligado à ausência de preparação diante de um acontecimento — oferece uma via teórica relevante para compreender a estrutura narrativa e afetiva do cinema de suspense e terror.




O Schreckaffekt e o campo do suspense

Em “Além do princípio do prazer” (1920), Freud distingue o susto (Schreck) do medo (Furcht) e da angústia (Angst), definindo-o como a reação diante de um perigo inesperado, quando o sujeito é surpreendido sem estar preparado. 


No cinema de terror, o Schreckaffekt é produzido pela construção narrativa: há sempre algo potencialmente ameaçador que paira no ar, uma presença cuja confirmação é constantemente adiada.

O espectador é mantido em estado de tensão, uma forma de angústia antecipatória que mobiliza seu corpo e sua atenção. Essa experiência é dupla: de um lado, há o desejo de saber, de ver, de encontrar o objeto oculto; de outro, há o temor daquilo que esse encontro possa provocar. Assim, a estrutura do suspense reproduz algo do funcionamento pulsional descrito por Freud, um movimento entre o buscar e o evitar, entre o prazer e o desprazer, que mantém o sujeito cativo da cena.


Como observa o psicanalista Mário Eduardo Costa Pereira, “em Freud temos dois sistemas de antecipação: o do desejo, que me faz olhar para o mundo de modo não neutro, ativamente, em busca dos indícios daquilo que suponho que por ali vai aplacar minha falta; e, ativamente, aquele que busca indícios do que é perigoso, do que pode fazer mal.”


O cinema de terror explora justamente esse duplo sistema. Ao sustentar o olhar do espectador entre o anseio e o receio, ele o coloca em um estado de vigilância afetiva, onde a percepção se torna campo de conflito entre o desejo de saber e o medo de encontrar. 



O caso de Tubarão (Steven Spielberg, 1975)

No filme Tubarão, de Steven Spielberg, essa dinâmica é explorada com precisão. O enredo se constrói em torno da presença ameaçadora de um predador invisível, cuja ação é percebida antes mesmo de ser vista. 

A trilha sonora, hoje um ícone do cinema, atua como operador do afeto: duas notas repetidas em ritmo crescente evocam o som do coração acelerado, provocando no espectador a ideia do ataque iminente.

Uma das cenas mais emblemáticas é aquela em que um dos personagens mergulha nas águas escuras para investigar um barco parcialmente destruído. Ele sabe que algo terrível se esconde ali, mas não sabe onde nem quando irá se manifestar. 


A tensão não reside na aparição do monstro, mas na incerteza — no intervalo entre o saber e o não saber. O espectador partilha dessa posição, tomado por uma expectativa angustiante que é continuamente adiada.


Quando o susto acontece, o corpo reage de forma imediata, quase automática. Logo depois, instala-se um processo de antecipação: o sujeito, ainda sob o impacto do inesperado, passa a esperar o próximo acontecimento. 


Esse movimento reproduz o próprio mecanismo do Schreckaffekt descrito por Freud: o surgimento repentino de algo que surpreende um sujeito que, embora já pressentisse o perigo, não pôde controlá-lo.

Nesse jogo entre presença e ausência, entre o que é mostrado e o que é ocultado, o filme também toca o domínio do Unheimliche, o inquietante. O mar, elemento familiar e cotidiano, converte-se em cenário de horror; o invisível torna-se mais aterrador que qualquer imagem explícita. 



Conclusão

O cinema de terror, quando lido à luz da psicanálise, revela-se como um dispositivo que encena a própria lógica dos afetos descrita por Freud. O Schreckaffekt e o Unheimliche funcionam como efeitos narrativos, estéticos e como expressões da estrutura psíquica do sujeito diante do inesperado e do desconhecido.


Em Tubarão, Spielberg traduz esses conceitos, construindo uma experiência em que o espectador participa ativamente do movimento de antecipação, medo e desejo. O susto deixa de ser um simples reflexo corporal para tornar-se um encontro com o real.


Entre o visível e o invisível, entre o som e o silêncio, o cinema de terror nos faz experimentar, no corpo, aquilo que a teoria freudiana formulou em palavras: a potência do afeto que irrompe quando a preparação falha e o inconsciente se faz imagem.




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Transcrição e adaptação:

Renata Suhett é jornalista, especialista em marketing, escrita e mídias sociais. Formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário de Barra Mansa - RJ.


 
 
 

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