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O que Freud recomenda aos psicanalistas?


Para responder a essa pergunta, é preciso reconhecer o caráter excêntrico da prática psicanalítica, algo que se destaca na leitura de Sigmund Freud, ainda hoje. Ele sempre fez questão de deixar isso claro.


Aliás, fazer questão é da natureza da psicanálise.


Essa característica desloca, de certo modo, o eu do centro da cena analítica para suas bordas. Em que sentido? No de sustentar um conjunto de ações voltadas à tentativa permanente de se reconhecer pelas lentes de um ideal, e fracassar.


Essa perspectiva se tornará mais clara adiante, quando articularmos dois textos freudianos, de 1912 e 1926, para responder à pergunta sobre as recomendações aos psicanalistas. O que não podemos perder de vista é a questão que Freud formula constantemente em sua obra: a defesa de uma praxis.


Entendemos por praxis, na psicanálise, o exercício ético e clínico que se funda na experiência com o inconsciente, e não em um conjunto de técnicas ou normas.


Com a palavra, o professor Daniel Omar Perez:


“Em 140 anos de história, a psicanálise se constitui como uma praxis clínica. Apenas uma praxis clínica que lida com o desejo um a um.”


Ora, para chegarmos às recomendações de Freud aos psicanalistas, é preciso antes interrogar: quem é um/uma psicanalista, como se chega a esse lugar e o que se pratica nele. Só então poderemos alcançar as recomendações que o pai da psicanálise nos deixou.



O que é e o que pratica um/uma psicanalista? 


Em 1926, o psicanalista Theodor Reik foi denunciado em Viena por prática ilegal da medicina. Ele não era médico, mas praticante da psicanálise. Freud, que à época participava do Instituto Psicanalítico de Viena, escreveu o texto A questão da análise leiga (1926) numa tentativa de esclarecer se a psicanálise seria um ramo da medicina ou uma prática de outra natureza.


Podemos perguntar ao próprio Freud: quem é o praticante da psicanálise?O texto de 1926, escrito em resposta a uma acusação, é notavelmente bem construído. Freud dialoga com um interlocutor fictício e, ao notar seu incômodo, escreve:


“Nosso interlocutor imparcial, que imagino aqui presente, deu sinais de impaciência enquanto expúnhamos os sintomas dos neuróticos.”


Freud percebe nessa figura uma crítica social à psicanálise e a registra no texto. O interlocutor, diz Freud, mostra-se curioso e comenta:

“Agora vamos saber o que o analista faz com o paciente a quem o médico não pôde ajudar.”


É justamente essa a proposta que Freud desenvolve no texto:

“O analista não usa instrumentos, nem sequer para um exame, e não prescreve medicamentos. Sempre que possível, deixa inclusive que o doente permaneça em seu ambiente e com suas relações habituais enquanto o trata.”


Mais adiante, o autor afirma que o terreno da prática analítica é o campo da palavra. Ela se dá numa dinâmica entre a fala do paciente — ou analisando, como queiramos designar — e a escuta do psicanalista, convocado à função. Trata-se, assim, de uma espécie de cura pela palavra, em que, de modo lento e gradual, o sujeito atravessa suas fantasias e começa a se dar conta delas.


Podemos perceber, portanto, que Freud, ao responder à questão vinculada a Reik, mostra a especificidade da psicanálise, diferenciando-a tanto da medicina quanto daquilo que chama de “psicologia oficial”.


Um dos argumentos que Freud utiliza para marcar essa diferença é que a psicologia oficial não pode dar sentido aos sonhos, enquanto estes constituem a base de sua teoria, vinculados ao que ele denomina de aparelho psíquico.


“A psicanálise é, portanto, uma prática que não medica, não utiliza instrumentos, e que se realiza no campo da fala e da linguagem. A pessoa do analista se coloca no lugar da escuta para fazer surgir a fala do paciente”, destaca o professor Daniel.


Temos aqui um conjunto de elementos que possibilitam a prática analítica: o aparelho psíquico, apresentado na segunda tópica freudiana (eu, supereu e isso), bem como os princípios do prazer e da realidade.


Diante desse horizonte em que se funda a prática clínica e seus elementos fundamentais, podemos agora observar as recomendações que Freud dirige aos praticantes da psicanálise.



Recomendações práticas


Nas primeiras recomendações, Freud deixa claro o rigor com que um/uma analista deve operar no campo da psicanálise. No texto de 1912, Recomendações aos médicos que praticam a psicanálise, ele estabelece parâmetros éticos e técnicos que ainda hoje orientam a formação e a prática analítica.


O professor Freud recomenda que, no tratamento psicanalítico, os praticantes tomem por modelo o cirurgião, “que deixa de lado todos os seus afetos e até mesmo sua compaixão de ser humano, e concentra energias mentais num único objetivo: levar a termo a operação do modo mais competente possível”.


Entre as armadilhas mais perigosas para o analista, Freud menciona o afeto da ambição terapêutica, isto é, “o desejo de realizar algo que tenha efeito convincente em outras pessoas”. Essa ambição, segundo ele, pode desviar o analista de sua posição ética, fazendo-o acreditar que pode curar por vontade própria, o que o leva a citar ironicamente: “Je le pensai, Dieu le guérit” (“Eu o pensei, Deus o curou”).


A regra fundamental da psicanálise permanece a associação livre: o paciente deve “comunicar tudo o que sua auto-observação capta, suspendendo toda objeção lógica e afetiva que procure induzi-lo a fazer uma seleção”.


Da mesma forma, o analista é convocado a escutar sem preconceito e a utilizar seu próprio inconsciente como instrumento de trabalho. Freud adverte: “Se o médico for capaz de usar seu inconsciente como instrumento na análise, ele não pode tolerar, em si mesmo, resistências que afastam de sua consciência o que foi percebido por seu inconsciente.”


É nesse ponto que Freud introduz uma de suas formulações: “Cada repressão não resolvida do médico corresponde, na expressão pertinente de Wilhelm Stekel, a um ‘ponto cego’ na sua percepção psicanalítica.”


Daí decorre uma das recomendações mais conhecidas: o analista deve antes submeter-se à própria análise.


Freud recorda ter dito, anos antes, que alguém poderia tornar-se analista “pela análise dos próprios sonhos”, mas reconhece que “nem todos conseguem interpretá-los sem ajuda externa”.


Ele reconhece o mérito da escola de Zurique por ter reforçado essa exigência: “todo indivíduo que queira efetuar análise em outros deve primeiramente submeter-se ele próprio a uma análise com um especialista.”


Esse sacrifício — “franquear a intimidade a um estranho, sem que a enfermidade o obrigue a isso” — é, segundo Freud, amplamente recompensado. Mesmo uma análise inconclusa em alguém saudável pode trazer “autoconhecimento e elevação de autocontrole”, abrindo caminho para a autoanálise.


Freud é enfático: “Quem, como analista, desdenhou a precaução de analisar a si mesmo, será castigado com a incapacidade de aprender mais que uma certa medida de seus pacientes.”


E vai além: “Ele facilmente cairá na tentação de projetar sobre a ciência aquilo que, em obscura percepção, enxerga das peculiaridades de sua própria pessoa.”


A postura ética do analista também é definida com precisão: “O médico deve ser opaco para o analisando e, tal como um espelho, não mostrar senão o que lhe é mostrado.”


Por fim, Freud adverte contra o que chama de “falsa psicanálise”: “quando um psicoterapeuta mistura um quê de análise com uma parte de influência por sugestão.”


A psicanálise, portanto, exige uma posição rigorosa. Nem moralizante, nem sugestiva, mas fundada na escuta, na neutralidade e na própria experiência de análise do analista.



Conclusão


Nas recomendações de Freud, fica claro que a prática analítica é menos um conjunto de regras e mais uma ética da escuta. Ela requer do analista uma técnica e uma posição: saber sustentar o lugar da ausência, da escuta, do não saber. 


Por isso, Freud compara o analista ao cirurgião, aquele que suspende afetos pessoais para operar com precisão, mas também exige dele algo que nenhum outro campo demanda: analisar-se a si próprio.

Aquele que não se analisou, adverte Freud, corre o risco de transformar suas próprias resistências em “pontos cegos” e projetá-las sobre o outro. Esta é uma das marcas mais singulares da psicanálise: ela não se transmite apenas por teoria, mas por experiência. O analista, para poder escutar, deve ter atravessado o próprio inconsciente.


Em última instância, ser analista não é dominar uma técnica, mas sustentar uma ética da palavra e do desejo: uma prática em que o saber se constrói no intervalo entre quem fala e quem escuta.



Referências


FREUD, Sigmund. Recomendações ao médico que pratica a psicanálise (1912). In: ______. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

FREUD, Sigmund. A questão da análise leiga (1926). In: ______. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XX. Rio de Janeiro: Imago, 1976.



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Transcrição e adaptação:

Renata Suhett é jornalista, especialista em marketing, escrita e mídias sociais. Formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário de Barra Mansa - RJ.




 
 
 

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