Considerações filosóficas sobre Das Ding e a Ética da Psicanálise A Coisa freudiana e o bem na história da ética.
Lacan, no seminário 7, inscreve a ética da psicanálise como contraponto da história da ética da tradição filosófica ocidental.
Uma reflexão acerca da Ética em Filosofia e Psicanálise.
É isso que Daniel Omar Perez nos convida a fazer neste episódio #25 do ESPECast, que você pode assistir no Youtube ou ouvir no Spotify. Nele, ele fala sobre os elementos da ética aristotélica e sobre as reflexões dos princípios e das virtudes da ética europeia, com o objetivo de nos orientar a uma ética do desejo.
Vamos a ele?
No livro A Ética a Nicômano, Aristóteles, filósofo grego dos anos 300 a.C. entende que o trabalho da prudência nos permite alcançar a felicidade. A ética aristotélica, então, diz que a prudência é o caminho para a felicidade.
Na Crítica da Razão Pura, Immanuel Kant, filósofo alemão do final dos anos 1700 e início dos anos 1800, entende que a obediência à lei nos permite alcançar a virtude, mas não necessariamente a felicidade.
Na Teoria da Ficção, Jeremy Bentham, um filósofo moderno da mesma época de Kant, entende que o seguimento das regras nos permite alcançar o bem comum.
Em todos esses modos de determinação do agir humano, alcançamos um bem: a felicidade, a virtude e o bem comum.
Alcançamos um bem em todos os sentidos possíveis. Alcançamos, de alguma forma, uma coisa.
As três teorias éticas apresentadas – aristotélica, kantiana e utilitarista – são totalmente distintas, mas nos propõem, à sua maneira, um caminho para alcançar um bem. Uma coisa. Não se trata de reduzir as diferenças inquestionáveis entre estas teorias filosóficas, mas de tentar enunciar uma operação que organize os três discursos.
“Dito em outros termos, poderíamos dizer que uma ação, determinada por um mandato considerado, em algum sentido, objetivo, alcança um bem, como uma coisa.” – explica o professor Daniel.
Trata-se, então, de um saber sobre aquela coisa a ser alcançada enquanto bem. Diante do excesso ou do defeito, teríamos um mandamento da justa medida do imperativo categórico ou da regra que promete, se não a felicidade, pelo menos um bem que se sabe.
Das Ding e Die Sache
A psicanálise também estaria propondo um outro bem em lugar dos anteriores. “O discute aqui dos bens seria uma espécie de encontrar a melhor a escolha.” – pontua Daniel.
Para Freud, a moral era um modo de elevar o desejo reprimido ao estatuto de virtude. Portanto, a relação de Freud com a história da Filosofia e da Ética se apresenta de maneira bem controversa, não parecendo haver uma continuidade.
Lacan, no entanto, radicaliza. Antes de indicar a relação entre o tipo de determinação e o resultado de uma ação – como é em Aristóteles, em Kant e em Bentham – ele chama a atenção para uma coisa que Freud nomeou como Das Ding, em alemão. Vale ressaltar que na língua alemã existem duas palavras para determinar o que em português traduzimos como coisa: “Das Ding” e ‘die sache”
Das Ding e Die Sache. Ambos os termos podem ser traduzidos como “coisa”. Porém Das Ding é uma coisa bem específica, tanto para Freud quanto para Lacan.
A psicanálise, portanto, chama atenção para aquela Coisa – Das Ding – que seria condição para que qualquer outra coisa – die sache- ou bem da realidade, possa vir a aparecer para o sujeito como um objeto desejado.
Ou seja, teríamos uma Coisa (das ding) como condição de possibilidade para que qualquer outra coisa (die sache) possa ocupar o lugar daquela como um objeto desejado. A Coisa anterior a qualquer outra coisa, como estabelecido por Lacan. Das Ding.
A Coisa com este “C” maiúsculo.
Essa Coisa remonta ao próprio Freud em seu Projeto de uma Psicologia para Neurologistas, de 1985 e também – e Lacan não aponta isso no Seminário 7 – A Ética da Psicanálise, onde dedica várias lições ao conceito de Das Ding – a uma conferência de Martin Heidegger justamente chamada Das Ding.
“De acordo com a leitura de Lacan” – nos ensina Daniel – “Freud refere-se a uma Coisa – das ding – que não se encontra determinada entre as outras coisas – die sagen no plural.” – completa ele indicando o capítulo do Projeto chamado Lembrar e Julgar.
Neste capítulo, segundo Daniel, Freud associaria a noção de Das Ding com a noção da mãe primordial, sob a forma de um Nebenmensch – um próximo – como primeiro objeto de satisfação.
“Esse Das Ding – que é a condição de possibilidade para um die sache consiga ocupar o lugar de objeto desejado desse das ding que não está – é então vinculado por Freud à ideia da mãe primordial. A mãe primordial como primeiro objeto de satisfação para Freud.” – Daniel Omar Perez.
Daniel cita Freud.
"Suponhamos que o objeto que a percepção forneça seja semelhante ao sujeito, isto é, um próximo, um semelhante. Então o interesse teórico também se explica pelo fato deste objeto, do semelhante, do próximo, do Nebenmensch, ser ao mesmo tempo o primeiro objeto de satisfação e o primeiro objeto hostil, assim também como o único poder auxiliar. Por isso, através do próximo o homem aprende a reconhecer. Então os complexos de percepção que decorrem deste próximo, deste semelhante, serão em parte novos e incomparáveis às suas feições no domínio do visual. Mas outras percepções visuais, por exemplo os movimentos de sua mão, coincidirão no sujeito com a recordação das impressões visuais próprias bastante semelhantes às do corpo, que estão associadas com recordações de movimentos vividos por ele mesmo. Outras percepções do objeto ainda, por exemplo quando ele grita, despertam a recordação do próprio grito e com isso as vivências próprias da dor. E assim o complexo do próximo divide -se em dois elementos, um dos quais se impressiona por uma estrutura constante e permanente reunido como coisa, enquanto que o outro é compreendido através do trabalho recordativo, ou seja, enquanto pode ser rastreado até uma notícia do próximo corpo."
Neste trecho, deste texto fundacional das origens da psicanálise, Freud estaria afirmando, como interpreta Daniel no episódio, que o Nebemensch – o próximo, o semelhante – tem dois componentes. Um deles é a coisa, e o outro a atividade da memória: Das Ding (coisa) und Vorstellungen (representações). A coisa seria a parte estranha. As representações seriam os modos de relembrar, reconhecer e tornar familiar aquilo que se perdeu.
Esquematizando:
Das Ding 🡪 mãe primordial (Nebenmensch) 🡪 próximo semelhante
Das Ding 🡪 A Coisa 🡪 A Parte Estranha
Die Vorstellungen 🡪 As Representações 🡪 modos de relembrar/reconhecer 🡪 tornar familiar o que se perdeu.
Em Martin Heiddeger
Como citado anteriormente, Lacan faz menção explícita a Freud quando fala de Das Ding no seu seminário 7 mas, como aponta Daniel, sua menção ao filósofo alemão Martin Heiddeger não é tão explícita, mas é evidente: “se é o que a palavra evidente faz algum sentido para vocês aqui.” – como aponta o professor, que vai seguir explicando tal referência.
Em Heidegger, 1954, vamos ter que aquilo que é a Coisa, das Ding, não poderá nunca ser experimentado. A Coisa não se confundiria com os objetos, com os quais a ciência, por exemplo, conseguiria a aniquilação da Coisa. O coisar da coisa – terminologia heideggeriana – como abertura, como vazio, como nada, como incondicionado de que algo venha acontecer, daria-se na quadrinidade do céu e da terra, dos mortais e dos divinos. Mas neste dar-se também se demora e também dura o próprio jogo da quadrinidade.
“Quer dizer” – explica Daniel – “que nessa relação entre o céu e a terra, entre os mortais e os divinos, aparece algo assim como das Ding, a Coisa, mas esse coisar da coisa é a abertura, é o vazio, é o nada, é o incondicionado do risco que algo venha a acontecer.”
Lacan – Seminário 7: A Ética da Psicanálise
Em seu seminário denominado A Ética da Psicanálise, Lacan vai retomar a história da Ética na filosofia moderna europeia. Para isso ele rememora Aristóteles e sua teoria da prudência e a conquista do bem e da felicidade, Kant e sua Crítica da Razão Prática e conquista da virtude e o utilitarismo e sua teoria do bem comum com o objetivo de propor uma ética da psicanálise.
Pois bem. Se apropriando de uma menção freudiana e de uma categoria heideggeriana para dizer que algo se organiza em torno de um vazio.
Lacan se apropria de uma menção freudiana e de uma categoria heideggeriana para dizer que algo se organiza em torno de um vazio. Não há representação que consiga capturar o ser da Coisa.
“Se a Coisa é aquilo que foi subtraído e ao mesmo tempo é condição de possibilidade de que outra coisa apareça. Se a coisa é abertura, é vazio, é nada. Se é incondicionado, é o risco de que algo possa vir a acontecer, então nós não temos como representar essa coisa positivamente. O acesso à linguagem e ao pensamento impede o acesso à coisa irrepresentável. Assim é possível pensar que a coisa materna já está perdida desde sempre, pela falta de um significante que a nomeie.” - explica Daniel citando algumas partes do Seminário 7 de Lacan.
E prossegue em sua argumentação:
“De acordo com Lacan, a perda primordial da coisa é, de algum modo, reparada, tamponada na tentativa das diferentes éticas, pelos bens da prudência, da lei e da comunidade. Dito por outras palavras, diante da perda da Coisa, o sujeito procura coisas, bens comuns, uma lei, um princípio, a felicidade. Nesse sentido, produz escolhas. Inclusive a escolha de não escolher.”
A escolha ética é uma escolha entre várias coisas ou é a escolha de não escolher.
Para Lacan, esse Das Ding não pode ser ocultado atrás de um bem. Há, portanto, uma condição que é subtraída e a presença dessa ausência é o que faz possível que algum objeto apareça como objeto de desejo: a felicidade, o bem comum, a realização de uma virtude, a realização de um prazer hedonista.
“Esse próximo estranho – das Ding seria uma espécie de próximo estranho. Essa mãe primordial seria ao mesmo tempo próxima e estranha. Esse próximo estranho, que se subtrai, mas que ao mesmo tempo se torna presente nessa ausência, primeiro exterior, anterior a todo recalque. Afeto primário fora do significado, perdido e nunca perdido, impossível de retornar. Outro absoluto do sujeito em torno do que se orienta todo o seu encaminhamento e que o sujeito trata de reencontrar. Assinala os trajetos dessa busca, que está orientada pelo princípio o prazer. Neste nível encontramos a lei como interdição, que na mesma medida em que está ligada à própria estrutura onde se encontra o desejo, marca também a impossibilidade da consumação última.” – comenta professor Daniel, fazendo algumas citações do Seminário 7 de Lacan e comentando sobre as pulsões que não cessam de se orientar para este ponto místico, impossível de ser expresso ou representado.
“É como se a pulsão buscasse aquele objeto, perdido desde sempre. É como se o impulso buscasse aquela mãe primordial que nunca existiu, mas que ao mesmo tempo, na sua ausência, é condição de possiblidade para que a pulsão encontre algum objeto em seu caminho.” – conclui Daniel.
“A coisa é o que do real padece dessa relação fundamental, inicial, que induz o homem nas vias do significante, pelo fato mesmo de ele ser submetido ao que Freud chama de princípio do prazer, e que está claro, espero, no espírito de vocês, que não é outra coisa senão a dominância do significante – digo, o verdadeiro princípio do prazer tal como ele funciona em Freud.” – Jacques Lacan. Seminário 7, lição 10.
Assim, a deriva da pulsão teria como direção o inorgânico, o vazio, a morte. O das ding estaria, nesse sentido, para além do princípio do prazer e do princípio da realidade. O princípio do prazer como aquele que guia o homem de significante em significante. Porém a Coisa, aquela mãe primordial, não é um significante. Passa-se, então, do simbólico para o real.
“Refere-se, em última análise, à morte, como um pulo para a fora do simbólico: o real, como se pulsão fosse um caminho para o real. É como se a pulsão que se articula entre o imaginário, o simbólico e o real, se orientasse para essa mãe primordial, para essa Coisa primordial, que não é outra coisa que o real que não cessa de não se inscrever. Neste sentido, diz Lacan, a questão ética articula-se por meio de uma orientação do referenciamento do homem em relação ao real.” – diz Daniel
A questão ética
Assim observamos que enquanto que a Ética em Aristóteles era o caminho da prudência, em Kant era a obediência a lei e nos utilitaristas como Stuart Mill e Bentham era alcançar um bem comum, temos que em Lacan a questão ética articula-se por meio de uma orientação do referenciamento do homem em relação ao real. A Ética seria a reorientação dessa deriva para o real.
Dito em outros termos: a experiência do trabalho analítico consiste em confrontar o sujeito do sintoma com o impossível do gozo. E aqui estamos, segundo professor Daniel, no ponto limite da experiência analítica, que se daria quando o sujeito se encontra com o real.
“Porém” – adverte o professor – “é preciso especificar o que estamos dizendo aqui por limite. A satisfação absoluta do impossível do gozo podia ser entendida como uma ilusão de reencontro com aquele objeto primordial perdido desde sempre.”
Os Complexos Familiares na Formação do Indíviduo
Daniel salienta um texto de Jacques Lacan, presente no volume Outros Escritos, e intitulado Os Complexos Familiares na formação do Individuo. Nele Lacan, falando sobre o complexo de desmame, chama a atenção para a tendência psíquica para a morte, que se revela em suicídios não violentos, greve de fome da anorexia nervosa, envenenamento lento de certas toxicomanias pela boca ou regime de formas das neuroses gástricas.
Essa tendência se encontraria também de forma mais abstrata, em fatores como na nostalgia da humanidade, na ilusão metafísica da harmonia universal, na utopia social de uma tutela totalitária. Formas todas, como diz Lacan , da busca pelo paraíso perdido e da mais obscura aspiração à morte.
CONCLUSÃo
O ponto limite é o que permite o salto para o real ou articulação no simbólico e imaginário. Entretanto, podíamos dizer que, a rigor, a pulsão de morte, esse impulso, essa deriva de energia, para o encontro com o primordial que nunca existiu, só alcança a sua satisfação quando fracassa na sua realização última, na sua satisfação absoluta. Esse fenômeno não é uma falha do sistema, mas a possibilidade de seu próprio funcionamento. Como não existe uma única pulsão completa, apenas pulsões parciais, então a satisfação completa não se realiza. Se a pulsão parcial busca a satisfação, então não busca o objeto determinado. A questão toda não está na especificidade do objeto e sim na satisfação pulsional do sujeito. Assim, as pulsões parciais se contêm em pequenos objetos e a partir daí se rearticula essa relação do ser humano com o objeto no qual a pulsão de algum modo alcança a sua meta.” – conclui professor Daniel, encerrando o episódio.
Indicação de obras para aprofundamento do tema:
Ética a Nicômaco – Aristóteles
Crítica da Razão Pura – Immanuel Kant
O Utilitarismo – Stuart Mill
Projeto de uma Psicologia para Neurologistas – Sigmund Freud
Seminário 7: A Ética da Psicanálise – Jacques Lacan
Até nosso próximo texto.
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Transcrição e adaptação:
Gustavo Espeschit é psicanalista, professor e escritor. Pós-graduado em Fundamentos da Psicanálise: Teoria e Clínica pelo Instituto ESPE/UniFil e Pós-graduado em Clínica Psicanalítica Lacaniana pela mesma instituição. Formado em Letras Inglês/Português com pós-graduação em Filosofia e Metodologia do Ensino de Línguas.
Autor do episódio: Daniel é psicanalista, pesquisador e professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutor e Mestre em Filosofia pela Unicamp, com pós-doutorado na Michigan State University nos EUA e em Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn na Alemanha. Autor de diversos livros de Filosofia e Psicanálise. Obteve o título de licenciado em filosofia em 1992 na Universidade Nacional de Rosario (Argentina). Publicou artigos científicos em revistas nacionais e internacionais, livros e capítulos de livros sobre filosofia e psicanálise.
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