“Uma perversão seria uma espécie de desvio, originalmente.” O tema de hoje é perversões, um tema quase que recorrentemente em pauta, colocado através da palavra perversão ou através da palavra perverso (a), utilizada como adjetivo. O professor Daniel Omar Perez, neste episódio, nos aproxima da ideia de perversão em psicanálise. Neste texto você encontra a transcrição dos pontos abordados, e você pode ver o episódio #84 também no canal do ESPECast no YouTube ou ouví-lo pelo Spotify. Vamos a ele!
A palavra perversão, obviamente, é anterior à psicanálise e existem diferentes usos para o adjetivo “perverso”. Robert Stoller, em seu livro “Perversão”, começa nos dando algumas pautas do que poderia ter sido definido como “perversão”. Em um certo tempo, em uma certa época, havia uma ideia de uma sexualidade, de um comportamento, considerado normal. Tudo aquilo que se desviasse dele seria visto como uma degenerescência, uma monstruosidade, uma perversão. Quer dizer, dentro dos modos de vida da Europa moderna, estabelecidos pela ciência, pela filosofia e pelas instituições modernas, se instaura (e o pensador francês Michel Foucault descreve esse processo em muitos de seus trabalhos), através das relações entre poder e saber, um conjunto de comportamentos que deveriam ser considerados como normais e tudo que se desviasse da norma poderia ser considerado como perversão.
Então, neste momento poderíamos definir uma perversão como algo que se desviasse da norma. Uma perversão seria uma espécie de desvio, originalmente.
PERVERSÃO COMO DESVIO DE PULSÃO
Freud vai retomar essa ideia de perversão como desvio, mas já não de um desvio de um comportamento normativo especificamente, mas como um desvio da pulsão. Sabemos que para Freud existe uma diferença entre “instinto” e “pulsão” – e este assunto pode ser explorado em outros vídeos do canal ESPECast. Um “instinto” pode ser determinado pela ordem da causalidade natural, biológica, diferentemente da “pulsão”, que é determinada pela causalidade psíquica inconsciente e possui outros elementos e características, que também foram trabalhados e examinados em outros vídeos tanto do canal quanto da plataforma ESPECast.
Retomemos “Três Ensaios para uma Teoria Sexual”, livro publicado em 1905 - que Freud volta a publicar reiteradas vezes em 1909, 1914, 1920, apresentando uma série de revisões e de reedições, mostrando assim seu processo de trabalho sempre em constante revisão. - Nestes ensaios Freud retoma a ideia de que a pulsão, operando de algum modo um desvio, produziria algo como uma perversão. A perversão seria, então, o desvio da pulsão.
PERVERSÃO COMO ESTRUTURA CLÍNICA
“Mas esse desvio da pulsão está articulado com o que se chama de castração em psicanálise.” – salienta o professor Daniel.
Jacques Lacan, retomando Freud, no Seminário 3: As Psicoses, entende que, em psicanálise, existiriam três estruturas clínicas: neurose, psicose e perversão. Cada uma dessas estruturas seria definida em função da forma como o sujeito nega a castração. A perversão, portanto, seria um modo de negar a castração diferente do modo de negação do neurótico e do psicótico.
Então, até aqui, temos a ideia de perversão como sendo:
um modo de desvio da normatividade;
um modo de desvio da pulsão.
um modo de negação da castração;
TODA PULSÃO ESTARIA DESVIADA Retomando os Três Ensaios.
“A pulsão, de algum modo, em vez de alcançar seu objeto e cumprir sua meta – alcançar o objeto de desejo e cumprir sua meta, que é sua satisfação – o que ela faz é se desviar. É como se a pulsão se demorasse.” -explica professor Daniel e exemplifica: - “Uma pulsão sexual que, de algum modo, se realizaria no coito, é desviada de seu objeto.”
Em 1915, no texto A Pulsão e seus Destinos, Freud estabelece que a pulsão não tem objeto. Ao contrário do instinto, que teria um objeto específico, o objeto da pulsão seria indeterminado, podendo ser, a princípio, qualquer um.
Pensemos: se o objeto da pulsão pode ser qualquer um, ou seja, não há um objeto predeterminado que satisfaça a pulsão, sendo sua meta a descarga. Essa descarga pode ser realizada, portanto, em qualquer objeto. Sendo assim, é lícito dizer que qualquer pulsão se desvia de seu objeto.
Nos Três Ensaios sobre a teoria da Sexualidade, Freud coloca como perversão, por exemplo, as preliminares de um jogo amoroso. Quando o casal fica se olhando antes da realização do coito, quando estabelece uma relação oral, ou seja, todas as preliminares de um jogo amoroso são entendidas por Freud como um desvio da pulsão.
Então, a princípio, toda pulsão estaria desviada.
TODO SER SEXUADO É PERVERSO
A partir daí, Lacan, no Seminário 23: O Sinthoma, Lacan vai nos colocar que todo ser sexuado é, a princípio, perverso. É perverso porque são diferentes as versões de como essa pulsão pode se orientar.
“Então, quer dizer que o caminho da pulsão tem diferentes versões e que essas diferentes versões da pulsão, de algum modo, constituem a singularidade do sujeito sexuado, do ser sexuado. O que implicaria que qualquer ser sexuado, como diz Lacan, a princípio seria perverso, quer dizer, teria formas diferentes de desvio da energia pulsional que descarregaria em objetos que, a princípio, poderiam ser qualquer um.” – nos explica professor Daniel.
PERVERSÃO NA NOSSA VIDA COTIDIANA
Quando se trata de perversão, geralmente se fala de dois elementos. Um deles é o fetichismo. O fetichismo tem a ver com a ideia de que um determinado objeto deve ser insubstituível para que se possa realizar o ato sexual, ou seja, para que haja excitação sexual, um objeto deve estar presente, de maneira insubstituível.
Daniel salienta um ponto interessante. Ele diz: “Não somos perversos, entre aspas, e encontramos objetos insubstituíveis, ou difíceis de substituir, pelo menos. Na vida cotidiana, em nossa vida cotidiana, há objetos que nós não substituímos por qualquer outro objeto. Quando conseguimos substituir um objeto por qualquer outro e nos satisfazemos pulsionalmente, isso significa que não temos nenhum vínculo, nenhum laço com esse objeto.” Este ponto deixa claro que o fetichismo, ao mesmo tempo que é um elemento da perversão, é também um elemento que habita nossa vida cotidiana. Por exemplo, quando colecionamos coisas, quando nos apegamos a coisas que têm um valor simbólico, que são insubstituíveis, essa é uma forma de fetichismo.
O outro elemento é o sadomasoquismo, quer dizer, essa relação que se pode estabelecer com o outro a partir de um prazer que, de alguma forma, também surge de um certo sofrimento. A literatura, a poesia, a música sertaneja e o tango por exemplo estão cheias de letras e textos onde o sujeito sofre por ter amado, como se ele só conseguisse amar através do sofrimento, ou como só se é possível amar enquanto se sofre, como se o amor implicasse, necessariamente, em sofrimento.
“Há um lado masoquista da relação com o outro que, de algum modo, se transforma em uma espécie de usufruto, de gozo, de se colocar em uma posição na qual o amor nos faz sofrer, o encontro com o outro nos faz sofrer.” – nos diz Daniel.
Percebemos então, segundo professor Daniel, como há elementos do que se denomina perversão, que não só estão em estruturas perversas, mas que habitam a vida cotidiana e as outras estruturas. E ele as enumera:
o desvio da pulsão;
o demorar das preliminares nos encontros sexuais;
a escolha de objetos e de diferentes objetos dessa pulsão, com a qual o sujeito se satisfaz;
a experiência de objeto insubstituível ou de difícil substituição por outro (fetichismo);
a experiência sadomasoquista de sofrer um pouco por amor.
Por último, há um elemento que deve ser considerado e que já nos permite pensar, segundo professor Daniel, já a estrutura perversa em outro sentido: quando o sujeito não consegue ter uma relação com o outro a não ser reduzindo este outro a mero objeto a ser descartado.
Nos nossos encontros com o outro em nossa vida cotidiana, nos encontros sexuais com o outro por exemplo, de alguma forma estabelecemos relações de objeto, de amar e ser amado, de ser objeto de desejo do outro e o outro ser objeto de meu desejo. Nesse caso, o jogo fantasmático seria se fazer de objeto para o outro enquanto o outro se faz de objeto para nós.
Quando o sujeito toma o outro como um mero objeto a ser reduzido a algo que, definitivamente precisa ser eliminado, teríamos então presente um traço fundamental para se pensar a perversão em certas relações individuais e coletivas, onde encontrarmos sujeitos que reduzem o outro a mero excremento. Isso é possível ser verificado em histórias clínicas e na própria história, com os genocídios e os extermínios por exemplo, que são possíveis por grandes estruturas perversas.
“E não estou falando apenas de sujeitos perversos, mas de grandes estruturas perversas que reduzem o outro a mero objeto a ser eliminado, totalmente descartado.” – explica Daniel, elucidando seu ponto de arremate do episódio.
Esses são os elementos fundamentais da noção de perversão. Para saber mais, acesse a plataforma do ESPECast.
Gostaria de assistir o episódio completo de nosso podcast sobre o tema? Confira o vídeo abaixo:
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Transcrição e adaptação:
Gustavo Espeschit é psicanalista, professor e escritor. Pós-graduado em Fundamentos da Psicanálise: Teoria e Clínica pelo Instituto ESPE/UniFil e Pós-graduado em Clínica Psicanalítica Lacaniana pela mesma instituição. Formado em Letras Inglês/Português com pós-graduação em Filosofia e Metodologia do Ensino de Línguas.
Autor do episódio: Daniel é psicanalista, pesquisador e professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutor e Mestre em Filosofia pela Unicamp, com pós-doutorado na Michigan State University nos EUA e em Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn na Alemanha. Autor de diversos livros de Filosofia e Psicanálise. Obteve o título de licenciado em filosofia em 1992 na Universidade Nacional de Rosario (Argentina). Publicou artigos científicos em revistas nacionais e internacionais, livros e capítulos de livros sobre filosofia e psicanálise.
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