“ Encontrar o objeto sexual significa, em suma, reencontrá-lo.” (Freud, 1987, p. 165) A sexualidade é um dos temas mais polêmicos do século XX e do que vai do século XXI. Faz parte das conversas da vida cotidiana acerca da educação, da saúde pública, das relações entre os seres humanos. Mas a sexualidade ocupa também um lugar muito específico e eu diria na prática clínica da psicanálise. É isso que o professor Daniel Omar Perez vai nos mostrar neste episódio #43 do ESPECast: A Teoria Sexual de Freud, que você pode acessar no canal do YouTube e no Spotify.
A sexualidade ocupa um lugar nevrálgico na prática da clínica psicanalítica. No ESPECast, durante boa parte dos encontros e em diferentes vídeos, abordamos que a psicanálise é uma prática clínica inicialmente desenvolvida para abordar casos de neuroses histérica. Esta prática se sustenta em um material, caracterizado pela emergência do inconsciente, que seriam por sua vez os lapsos, os sonhos, as fantasias, os chistes. Porém, ao mesmo tempo que se sustenta neste tipo de material a prática clínica psicanalítica também se sustenta em uma teoria da sexualidade.
O SINTOMA E SEU TRATAMENTO PSICANALÍTICO
Em 1905 Freud publica os Três Ensaios para uma Teoria Sexual e leva a público a teoria que viria então a sustentar o mecanismo da repressão, que por sua vez produziria os sintomas a serem tratados em uma clínica das neuroses histéricas. Como apresentado em outros episódios do ESPECast, vimos que a psicanálise nasce com a invenção dessa hipótese do inconsciente. Hipótese esta que permite acolher os fenômenos tanto da neurose histérica como, posteriormente, da neurose obsessiva.
Estes fenômenos se produziriam a partir de algumas formações substitutivas, de alguns sintomas. Ou seja, os sintomas que se produzem seriam formações substitutivas de um desejo recalcado inconscientemente, ou seja, no lugar da realização de um desejo o que se encontra é um sintoma como formação substitutiva produzida através do mecanismo da repressão.
O corpo, poderíamos dizer, não só se nutre, se alimenta, mas também produz uma energia. Esse corpo em excitação deveria, de algum modo, poder escoar essa energia que produz em objetos de satisfação, em objetos de escoamento, permitindo, assim mesmo, que o sujeito alcance um certo estado de calma com a diminuição da excitação.
Acontece que, por causa de algum tipo de mandato social estabelecido por normas ou por conjunto de normas, de regras, de leis que constituem o ordenamento social, ou por causa de costumes familiares e culturais do grupo com o qual se identifica, o sujeito pode se ver, inconscientemente, impedido de alcançar a satisfação dessa energia, o escoamento dessa energia, em relação a alguns objetos, ao mesmo tempo que pode fazê-lo em outros. Quer dizer, a cultura, a sociedade em si, se conforma com um conjunto de regras, normas - escritas ou não - costumes e hábitos que permitem o corpo escoar em alguns objetos essa energia, ao mesmo tempo que proíbe em outros. O impedimento produz na psique humana um fenômeno de recalque, de repressão e a energia contida acaba provocando uma formação substitutiva, isto é, o sintoma.
De acordo com Freud, quando de suas primeiras tentativas de desenvolvimento de uma prática clínica, ou seja, nos primórdios da psicanálise, este sintoma só poderia ser removido tentado tornar consciente o que seria da ordem do inconsciente. Assim Freud entendia o que seria a cura psicanalítica: tornar consciente o inconsciente. De alguma forma, aquele mecanismo de repressão que não permitiu o escoamento da energia do corpo em determinados objetos apareceria inconscientemente na forma, por exemplo, de uma conduta repetitiva, e trabalho da análise consistiria em tornar consciente o inconsciente justamente deste comportamento, desta conduta repetitiva que, de certa forma, produziriam por sua vez os sintomas, gerando um mal-estar no sujeito.
Assim, todo o tratamento psicanalítico seria uma experiência onde o paciente fala – e isso já sabemos desde os primeiros casos de Freud e de Breuer, quando os dois abordaram os cinco casos emblemáticos em Estudos sobre a Histeria e onde duas pacientes mostram justamente isso – e produz associação livre e o analista por sua vez propicia uma experiência artificial onde o sujeito vem a escutar a própria fala, vem a escutar aquilo que ele mesmo diz. A partir daí se torna possível, com o trabalho de intervenção do analista, fazer com que o paciente consiga, de algum modo, a partir do corte de sua fala, chegar a uma nova elaboração. Através desta operação, se tornaria possível o movimento de se tornar consciente o inconsciente.
Em resumo teríamos então que o tratamento clínico seria uma experiência de fala, por meio de associação livre, que permitiria emergir, de alguma forma, no consciente aquilo que está reprimido no inconsciente. E assim podemos observar que temos dois elementos fundamentais, dois pilares para o trabalho clínico.
o material do sujeito, onde o inconsciente pode emergir. Ou seja, os lapsos, sonhos, fantasias e chistes;
a teoria sexual, que permite dar conta da energia do corpo e dos objetos nos quais essa energia se descarrega encontrando, ou não, sua satisfação.
O primeiro ponto já foi tratado em outros episódios do ESPECast. Analisemos qual seria essa teoria sexual apresentada no ponto dois.
TRÊS ENSAIOS PARA UMA TEORIA SEXUAL
Freud observou na clínica, a partir do relato das suas pacientes, que os sintomas se associavam, reiteradamente a um acontecimento da vida sexual desta. Assim foi se indagando por essa via durante os anos 1890, 1900 e, finalmente, em 1905 publicou um dos livros mais importantes da teoria psicanalítica: Três Ensaios para uma Teoria Sexual.
Freud descobriu que a satisfação humana - como descarga de energia - não acontecia apenas a partir da adolescência, que era também uma atividade que iniciava na infância, na relação do bebê com a mãe. Nessa relação não há só uma relação de cuidado, uma relação de nutrição, há também há uma relação de satisfação. Essa satisfação Freud vai chamar de satisfação sexual.
Um livro que falava sobre sexualidade infantil e tirava a infância, não só da escuridão mantida pelas psicologias e pela medicina da época, mas que se refere também aos conflitos psíquicos propondo a ideia de que a vida sexual do ser humano começava no início de sua existência somente poderia causar uma certa rejeição na época. Embora saibamos que na época em que Freud o publicou, já havia outros textos sobre sexualidade, sobre sexologia, não sendo Freud o primeiro a abordar esse tema, mas ele foi o primeiro a levar este pensamento de que a sexualidade se inicia junto com a existência do sujeito.
“Freud trabalha a sexualidade de um modo muito particular, muito peculiar, vinculando a satisfação sexual à vida do infante em relação com a mãe. E esse é um ponto bastante interessante.” – nos pontua Daniel.
Exploremos. Diante dessa situação, onde o infante é visto, de algum modo, como se fosse ingênuo, moralmente incólume, puro, nós vamos ter Freud apontando para a questão da satisfação da criança.
“E aí se misturam, neste livro, questões científicas e questões morais” – diz Daniel.
A obra está dividida em três partes:
Ensaio 1 – As Aberrações Sexuais
Ensaio 2 – A Sexualidade Infantil
Ensaio 3 – As Metamorfoses da Puberdade
ENSAIO 1 – AS ABERRAÇÕES SEXUAIS No primeiro ensaio, Freud aborda a origem infantil das perversões. Começa criticando os preconceitos populares e os preconceitos dentro do discurso científico sobre o que seria perversão. Na época, a homossexualidade era vista como um caso de degenerescência ou de tara. Diante disso, Freud se propõe a buscar na infância a origem da escolha dos objetos de satisfação sexual, não por uma determinação biológica ou uma escolha consciente, mas pela via do desenvolvimento psíquico, de algum modo inscrito na ordem social.
Assim ele vai demonstrar que a satisfação sexual não está determinada, estrita e unicamente, somente a partir de uma causalidade natural. Isso não significa que essas escolhas sexuais sejam feitas de maneira consciente. Existe uma determinação psíquica inconsciente na própria constituição do aparelho psíquico que direciona o sujeito para as escolhas de objeto de satisfação sexual. Este é o ponto que Freud tenta examinar.
Freud entende que a noção de instinto presente nos estudos da época sobre o comportamento animal não é suficiente para dar conta da experiência sexual do sujeito humano. Assim, então, ele propõe uma outra noção: a de pulsão. Instinto é escrito em alemão como Instinct e pulsão como Trieb. O instinto fica inscrito semanticamente dentro das experiências de necessidade biológica, enquanto que a pulsão, o Trieb, seria um impulso que articularia a questão somática com os elementos psíquicos.
A noção de pulsão, isto é, de uma carga de energia associada a um representante psíquico, a uma ideia, seria o que direcionaria o movimento desse impulso. Assim, a pulsão seria uma carga de energia direcionada por um objeto. A partir daqui Freud faz a distinção das perversões. Primeiro como os desvios sexuais em relação ao objeto sexual, ou seja, a pessoa pela qual sente uma atração sexual e segundo com os desvios em relação à meta sexual, ou ao ato ao qual se conduz a pulsão.
Com respeito aos desvios em relação ao objeto sexual, ou seja, à pessoa ou ao objeto que exerce a atração sexual, Freud vai mencionar diferentes formas de homossexualidade, de pedofila e zoofilia. Essa orientação para um determinado objeto de satisfação seria adquirida e não inata, como pensava a medicina da época. Quer dizer, nosso impulso - essa quantidade de energia dispensada pelo corpo em direção a um objeto - não seria da ordem apenas de uma determinação biológica, de uma determinação inata. Esse impulso seria um impulso que carregaria uma quantidade de energia associada a uma ideia – um representante pulsional – que, de algum modo, a partir dessa relação de determinação inconsciente, se direcionaria para alguns objetos e não para outros.
Se trata aqui de uma escolha de objeto, mas de uma escolha inconsciente, já que a quantidade de energia não se direcionaria para um objeto mecanicamente, naturalmente, mas também não o faz segundo uma escolha livre, mas sim a partir de uma determinação inconsciente, que não vem a depender de nenhum inatismo e nem de uma eleição consciente, e sim do desenvolvimento psíquico na experiência de cada um dos sujeitos.
“Cada um dos sujeitos experimentará aquilo que ele vai chamar de seu corpo e experimentará a relação com os objetos e com as pessoas e é a partir dessa elaboração que se produzirá a escolha de objeto.” – nos ensina Daniel.
A PREDISPOSIÇÃO A BISSEXUALIDADE
Freud adota como princípio um postulado de seu colega e amigo Flieβ que propõe a predisposição universal da bissexualidade do sujeito humano. Isso significa que, a princípio, todos os seres humanos estariam abertos a ter como objeto da pulsão qualquer objeto, independentemente da normatividade socialmente, culturalmente e moralmente estabelecida, entre o que se chamaria de menino e de menina. Flieβ havia demonstrado que o desenvolvimento embrionário do sujeito humano mostraria sua condição de bissexual.
Freud avançou com essa ideia, passando do campo biológico para o campo psíquico e isso é o que importa do ponto de vista da psicanálise como prática clínica: a princípio, qualquer objeto pode ser objeto de satisfação sexual e só haverá uma escolha de um objeto e a renúncia de outro objeto no desenvolvimento da constituição psicológica do sujeito humano. Dessa forma o sujeito teria tendências à masculinidade e tendências ao que se denomina de feminilidade, que coexistiriam desde a infância até a idade adulta.
“A escolha inconsciente do objeto de satisfação pulsional dependerá de como essas pulsões vão ter mais força ou menos força, mais acolhida ou menos acolhida em determinados objetos e não em outros. Isso é o que constituirá o chamamos de escolha de objeto e que depois, determinará o gênero ou que culturalmente se entende em uma determinada cultura como gênero e como comportamentos de gênero. Existem comportamentos em uma cultura que podem ser considerados comportamentos femininos, existem comportamentos em outra cultura que podem ser considerados como comportamentos masculinos ou não.” – em palavras do professor Daniel.
Esquematizemos:
a) um corpo excitado descarrega uma energia em um objeto conforme um leque de objetos. Essa descarga vai produzir a satisfação;
b) o modo de escolha desses objetos está determinado por uma causalidade psíquica inconsciente e ela depende da elaboração deste sujeito;
c) a partir dessa elaboração, em um segundo momento se fará a escolha da posição desse sujeito como masculino, feminino, transexual, bissexual, etc.
A energia do corpo do sujeito humano se produz em zonas de excitação chamadas por Freud de zonas erógenas. O predomínio insistente de uma dessas zonas em detrimento de todas as outras estaria ligado àquilo que se denomina de perversão. Isto levaria ao uso de partes específicas do corpo ou objetos fetiche para a satisfação sexual.
“Então é interessante como nós vamos vendo que a noção de perversão tem a ver com as zonas de excitação, isto é, as zonas erógenas do corpo que vão tomando predomínio em relação a outras, que de algum modo, ficam diminuídas. Há determinados objetos que vão aparecer como fundamentais em relação a outros que vão ser diminuídos. Em outros casos, se produziriam também fixações de metas sexuais exclusivamente na oralidade, no toque, no olhar, no sadismo ou no masoquismo. Observamos então que os elementos que compõem a perversão são os elementos que compõem a vida sexual desse corpo excitado e estaria então no destaque de um dos aspectos, lugares, práticas ou objetos que nós temos.” – nos diz Daniel acrescentando que segundo Freud os neuróticos imaginam nas suas fantasias e nos seus sonhos os modos de satisfação que o perverso realiza.
Nos atentemos ao fato de que aqui o termo perversão não tem nenhum caráter pejorativo e nem é uma condena moral. O termo aqui é apenas usado para nomear uma orientação da pulsão para determinados objetos. A predisposição a perversão enquanto escolha de objeto não é entendida como uma anormalidade e se encontra também na vida dita normal, normativa, da constituição psíquica do ser humano.
CONCLUSÃO
Daniel termina o episódio enfatizando que os outros dois ensaios vêm para compor o núcleo fundamental da teoria da sexualidade na psicanálise. Esses ensaios e algumas outras considerações serão explorados em um outro episódio.
Gostaria de assistir o episódio completo de nosso podcast sobre o tema? Confira o vídeo abaixo:
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Transcrição e adaptação:
Gustavo Espeschit é psicanalista, professor e escritor. Pós-graduado em Fundamentos da Psicanálise: Teoria e Clínica pelo Instituto ESPE/UniFil e Pós-graduado em Clínica Psicanalítica Lacaniana pela mesma instituição. Formado em Letras Inglês/Português com pós-graduação em Filosofia e Metodologia do Ensino de Línguas.
Autor do episódio: Daniel é psicanalista, pesquisador e professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutor e Mestre em Filosofia pela Unicamp, com pós-doutorado na Michigan State University nos EUA e em Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn na Alemanha. Autor de diversos livros de Filosofia e Psicanálise. Obteve o título de licenciado em filosofia em 1992 na Universidade Nacional de Rosario (Argentina). Publicou artigos científicos em revistas nacionais e internacionais, livros e capítulos de livros sobre filosofia e psicanálise.
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