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Françoise Dolto: vida, obra e contribuição à psicanálise


Se você tem acompanhado nossa série de artigos sobre as mulheres na psicanálise, já deve ter percebido que nem todas receberam o mesmo reconhecimento. Nomes como Sabina Spielrein e Margarete Hilferding, que produziram contribuições fundamentais, tiveram sua trajetória silenciada ou apagada das narrativas oficiais. 


Não por acaso: a história da psicanálise também foi atravessada por exclusões e apagamentos de gênero. Foi justamente esse contexto que despertou em nós o interesse em revisitar a presença das mulheres nesse campo, buscando reinscrever seus nomes e obras na história.


Com Françoise Dolto, porém, a trajetória assume contornos distintos. Médica pediatra e psicanalista, ela superou as interdições e consolidou sua presença no movimento psicanalítico francês. 


Dolto não apenas sobreviveu à cena institucional: ela a transformou. Suas ideias sobre a criança como sujeito de linguagem ecoam até hoje, sustentando práticas clínicas, dispositivos de acolhimento e debates sobre a infância que continuam vivos no século XXI.




A Pequena Marette: infância e formação subjetiva

Françoise Dolto, nascida Françoise Marette em Paris, em 1908, é uma figura marcante da psicanálise francesa do século XX. Sua obra é inseparável de sua vivência, das marcas familiares e do modo singular como pensou a criança enquanto sujeito de linguagem.


Para a psicanalista Cibele Scarpelin, Dolto sempre foi atravessada por uma leitura própria da subjetividade, marcada pelo corpo e pela palavra. “Falar da trajetória da Dolto é entender qual é a formação dessa psicanalista, quais foram as suas influências e como foi seu percurso”, considera Scarpelin.


Filha de uma família católica, numerosa e conservadora, Dolto cresceu em um ambiente permeado por fortes valores religiosos, e sua relação com a mãe foi determinante para sua formação psíquica.

Um episódio que a marcou foi a morte da irmã mais velha, aos dezoito anos. A mãe atribuiu a Françoise, que tinha doze anos à época, uma espécie de responsabilidade mística pela sobrevivência da irmã, pedindo-lhe que rezasse por sua cura. 


Quando a irmã faleceu, a mãe dirigiu a Dolto um sentimento de culpa: uma inversão simbólica que, como observa Scarpelin, parecia traduzir o desejo inconsciente de que fosse a filha mais nova, e não a preferida, quem morresse.


Esse acontecimento foi importante para a consciência precoce que Dolto desenvolveu sobre o peso das palavras maternas e sobre a forma como a criança pode incorporá-las como destino.


Outro momento vívido da infância, relatado pela própria Dolto, ocorreu com o irmão menor. Após tomar seu mingau, o menino presenciou uma briga entre familiares e vomitou. Ao perceber a cena, os adultos chamaram um médico, que impôs uma dieta para investigar a causa do mal-estar. Dolto, ainda criança, observou que o vômito não era de origem física, mas uma reação ao conflito emocional que o menino testemunhara, e concluiu: “os adultos não sabem o que fazem”.


Esses episódios ajudaram Dolto a construir uma sensibilidade clínica, voltada para os efeitos da linguagem no corpo e na constituição do sujeito. “Parece que, na infância, por ser uma criança muito observadora, a gente consegue — olhando para trás — perceber que ali já havia aspectos que fariam com que Dolto se tornasse psicanalista”, acrescenta Scarpelin.


Desde cedo, Dolto percebia que os sintomas falam, e que a escuta, mesmo a de uma criança, pode revelar o que escapa à compreensão dos adultos.



Educação e resistência familiar

A formação escolar de Françoise Dolto teve início em casa, sob supervisão da mãe. Desde cedo, manifestou interesse pelo desenvolvimento e bem-estar infantil, afirmando que desejava tornar-se “médica da educação”.


Esse projeto encontrou forte oposição familiar. A mãe considerava inadequado o percurso científico e profissional para uma mulher, o que instaurou um conflito entre o desejo de Dolto e a interdição materna, experiência que retornaria de forma central durante sua análise pessoal.


Sua primeira formação profissional ocorreu na área de enfermagem, em 1930, curso apoiado pela mãe por considerá-lo útil diante do contexto da guerra. Dolto observava, nesse período, a situação das mulheres que haviam perdido os maridos, o que reforçou sua percepção sobre vulnerabilidade e cuidado.


A experiência em enfermagem contribuiu para consolidar seu interesse por medicina e pelo acompanhamento do desenvolvimento da criança, preparando o terreno para sua futura integração entre prática clínica e psicanálise.



Encontro com a medicina e a psicanálise

A entrada de Françoise Dolto na medicina, em 1932,  foi marcada pelo impedimento da mãe e por um contexto social em que o estudo científico ainda era considerado impróprio para as mulheres. 

Após concluir o Certificat d’Études Physiques, Chimiques et Naturelles (PCN), requisito obrigatório para o ingresso em medicina, Dolto foi aceita no curso apenas porque seu irmão, Philippe Marette, também o cursaria.


Durante essa formação, optou por disciplinas de filosofia e teve os primeiros contatos com os textos de Freud, entre eles "A psicopatologia da vida cotidiana (1901) e Cinco lições de psicanálise(1910)".


A relação de Dolto com o irmão era competitiva. Enquanto Dolto se destacava pelo bom desempenho, Philippe enfrentava dificuldades. Um amigo de Dolto indicou o psicanalista René Laforgue, cuja análise resultou em uma melhora significativa no rendimento do irmão.


Vivendo tensões familiares — a mãe sabotava seus estudos, escondendo documentos e desencorajando-a a prosseguir — e em um noivado que também reprovava sua escolha profissional, Dolto procurou Laforgue e iniciou sua própria análise em 1934.


A análise, que durou três anos, encerrou-se em 1937, mesmo ano em que concluiu o curso de medicina e iniciou estágio em psiquiatria infantil na Maison-Blanche. Essa experiência confirmou seu interesse pela escuta da criança e pela prevenção do sofrimento psíquico precoce. Campo que uniria definitivamente medicina e psicanálise em sua prática futura.


Relações institucionais e reconhecimento

Dolto começou sua prática em hospitais infantis, onde percebeu a necessidade de ouvir o sujeito infantil para além de seu sintoma físico. Em 1939, defendeu sua tese de doutorado intitulada Psicanálise e Pediatria.


Durante a década de 1940, Françoise Dolto consolidou sua atuação como médica e analista, trabalhando no hospital Trousseau, onde permaneceu até 1978. Em 1942, casou-se com Boris Dolto, com quem teve três filhos.


Nos anos 1950, aproximou-se de Jacques Lacan, com quem compartilhou reflexões sobre técnica e clínica psicanalítica. A relação entre ambos foi decisiva para a inserção institucional de Dolto no movimento psicanalítico francês. 


Em 1953, após a expulsão de Lacan, Dolto e de outros analistas da Sociedade Psicanalítica Internacional (IPA), ela participou da fundação da Société Française de Psychanalyse (SFP), que no primeiro momento não foi reconhecida pela IPA.


Sua produção teórica e clínica passou a ganhar visibilidade, ainda que acompanhada de críticas. Parte dos analistas via sua escuta da criança como excessivamente intuitiva; outros a consideravam pioneira por introduzir a fala da criança como material de análise legítimo. Dolto sustentava que a criança deve ser tratada como sujeito de linguagem, capaz de produzir significações próprias, e que o corpo é parte essencial desse processo.


O caso “Dominique”, apresentado em 1967 no Colóquio sobre Psicoses Infantis de Paris, foi determinante para sua projeção internacional. Nas décadas seguintes, ampliou o diálogo com o público leigo, participando de programas de rádio — entre eles Docteur X e SOS Psychanalyste —, nos quais respondia a perguntas de pais e educadores sobre o desenvolvimento infantil.


Em 1979, criou a Maison Verte (Casa Verde), um espaço voltado à socialização de bebês e crianças pequenas junto às mães, com base em uma escuta psicanalítica precoce. O projeto tornou-se referência por propor um lugar intermediário entre o lar e a escola, articulando clínica, educação e prevenção.



Últimos anos e legado

Na década de 1980, Françoise Dolto publicou obras fundamentais para a consolidação de sua teoria, entre elas L’Image inconsciente du corps (1984). Nesse livro, formulou a noção de imagem inconsciente do corpo, compreendida como uma construção simbólica que articula corpo, linguagem e desejo.

Após a morte de Boris Dolto, em 1981, manteve intensa atividade clínica e intelectual. Seguiu publicando, ministrando seminários e participando de debates públicos sobre infância e psicanálise. Faleceu em 1988, aos 79 anos.


Sua obra contribuiu para aproximar a psicanálise dos campos da educação e da pediatria, ampliando o alcance social da escuta analítica. “A primeira ideia dela era aplicar a psicanálise para ajudar os atendimentos médicos”, relata Cibele.




Conclusão

A trajetória de Françoise Dolto mostra que a interdição ao seu percurso na psicanálise não veio dos teóricos, mas do contexto familiar, especialmente da mãe. 

Dolto precisou enfrentar essa interdição para sustentar seu desejo de estudar e trabalhar como médica e psicanalista, enfrentando consequências concretas, como a necessidade de sair de casa e a limitação do apoio financeiro paterno.


Mais tarde, sua posição institucional também foi desafiada: quando expulsa da Sociedade Psicanalítica Internacional (IPA), foi acusada de adotar uma prática excessivamente “intuitiva”. 

Ainda assim, Dolto manteve sua produção intelectual, consolidando uma obra que permaneceu coerente com sua visão da criança como sujeito de linguagem e com a importância da escuta precoce.


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Transcrição e adaptação:

Renata Suhett é jornalista, especialista em marketing, escrita e mídias sociais. Formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário de Barra Mansa - RJ.


Referências Bibliográficas:


  • Ferreira, Deborah Melo; Castro-Arantes, Juliana Miranda. Câncer e corpo: uma leitura a partir da psicanálise. Analytica, São João del-Rei, v. 3, n. 5, p. 37-71, jul./dez. 2014. Disponível em: https://pepsic.bvsalud.org/pdf/analytica/v3n5/v3n5a04.pdf. Acesso em: 08 out. 2025.

  • Freud, Sigmund. O mal-estar na civilização. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (obra original publicada em 1929).

  • Freud, Sigmund. Projeto para uma psicologia científica. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (obra original de 1895).

  • Foucault, Michel. O nascimento da clínica: uma arqueologia do olhar médico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. (obra original publicada em 1963).

  • Lacan, Jacques. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. (seminário original de 1964).


 
 
 

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