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Corpo, Sintoma e o Câncer na Escuta do Analista


Detesto o meu maxilar mecânico, porque a luta com o aparelho me consome tanta energia preciosa. Mas prefiro ele a maxilar nenhum. Ainda prefiro a existência à extinção. - Freud, 1926


Antes de qualquer coisa, é preciso lembrar que Sigmund Freud, pai da psicanálise, conviveu com o câncer durante dezesseis anos. O diagnóstico de um tumor maligno no palato veio em 1923 — mesmo ano da publicação de O Eu e o Isso — e o acompanhou até sua morte, em 1939.


Freud lutou contra o câncer, e, aliás, essa palavra luta aparece com frequência nos discursos dos sujeitos atravessados pela doença, como um mantra que aponta tanto para a vitória quanto para a glória de “ficar curado”. Foram cerca de trinta cirurgias e uma prótese que, ao mesmo tempo em que lhe causava dor, lhe permitia continuar existindo.


Não por acaso, a psicanálise se ocupa dos conflitos psíquicos inscritos no corpo, marcando-o. É impossível pensar a psicanálise sem o corpo. No entanto, quando falamos de corpo, é preciso perguntar: de que corpo se trata?


O corpo é dito de muitos modos, inserido em diferentes campos de oposição. Para a psicanálise, o corpo não é apenas biológico. Em outros termos, é o lugar onde o sujeito é atravessado pela linguagem, pelo desejo e pela dor.


Acompanhe conosco a relação entre o corpo em Freud e em Lacan, a inscrição da doença e sua dimensão simbólica, e como se configura a escuta da(o) analista no dispositivo clínico.



Corpo: no Ocidente, em Freud e em Lacan

Importa ressaltar que, ao longo da história, a ciência médica se apropriou do saber sobre o corpo, tomando-o como objeto de estudo, com o propósito de investigar as causas das doenças e propor tratamentos. Havia, nesse movimento, um desejo próprio do saber médico: compreender o corpo e torná-lo previsível.


Nesse contexto, a tradição ocidental — sustentada pelas heranças grega, latina, judaico-cristã e muçulmana — legou uma separação entre corpo e alma, matéria e espírito. As ciências modernas reforçaram essa dicotomia ao estabelecerem a relação entre cérebro e mente, consolidando a distinção entre as ciências da natureza e as do espírito.


O psicanalista Daniel Omar Perez, no episódio O Corpo: psique/soma da plataforma ESPEcast, aponta que há também outras leituras possíveis. Em algumas tradições orientais, por exemplo, corpo e mente não se apresentam como domínios separados. Perez lembra ainda que autores como Michel Foucault evidenciaram a dimensão política do corpo — um corpo que ocupa lugares definidos por saberes e poderes, sendo incluído ou excluído de determinados espaços sociais.


Sigmund Freud, por sua vez, rompe com a oposição matéria/espírito, promovendo uma verdadeira virada epistêmica ao introduzir a sexualidade e a linguagem como elementos constitutivos do corpo na formulação de sua teoria psicanalítica. O corpo freudiano não é meramente biológico: é um corpo excitado e erógeno, organizado pelas zonas de prazer e de gozo.


Em Lacan, o corpo é falante e sexuado, atravessado pela linguagem e sustentado no gozo. É o corpo real: aquele que goza, que não se representa e que, muitas vezes, não encontra seu lugar no sistema de produção e de consumo, surgindo como um corpo perturbador e fragmentado.


Como observa Daniel Omar Perez:


“O corpo perturbador das relações de produção é aquele que não entra nem encontra seu lugar no sistema de produção e de consumo. Se você consegue introduzir esse corpo nesse sistema de algum modo, vai encontrar seu lugar; do contrário, geralmente o anestesiamos, com terapia medicamentosa.”

Nos dias atuais, é comum que a medicina busque diagnósticos cada vez mais precisos e tratamentos farmacológicos voltados ao restabelecimento do que se considera saúde.


Deborah Ferreira e Juliana Castro-Arantes, em Câncer e corpo: uma leitura a partir da psicanálise, destacam que “os significantes ‘luta contra o câncer’ e ‘combate ao câncer’ são traços de certa obstinação terapêutica que visa responder a uma demanda mundial para dar conta de uma doença que mata cotidianamente milhares de pessoas”. As autoras acrescentam que “na clínica, vemos a angústia da equipe de saúde presente nos casos em que os cuidados curativos chegam a um limite, havendo uma tentativa constante de responder ao incontrolável do câncer e da morte.”


Se, no Ocidente, o corpo é compreendido como objeto de saber e de intervenção, em Freud ele é excitado, erógeno e atravessado pela linguagem; em Lacan, é real e goza. Surge, então, a pergunta: como articular o corpo doente e sua dimensão simbólica no contexto do câncer?



O corpo doente e a dimensão simbólica

Para Freud, o corpo é uma das principais fontes do sofrimento humano. Em O mal-estar na civilização (1929), ele mostra como a experiência da dor e das limitações físicas revela a vulnerabilidade do sujeito diante de sua própria corporeidade.


No caso de doenças como o câncer, esse sofrimento adquire contornos ainda mais evidentes. A irrupção da condição orgânica desorganiza a rotina e desestabiliza o modo como o sujeito se reconhece. O corpo, antes silencioso, passa a se impor, recordando o sujeito de sua fragilidade e finitude.


Na teoria lacaniana, essa experiência pode ser pensada a partir do conceito de Real. Segundo Lacan (1962-1963), o Real é aquilo que escapa à simbolização, o que não pode ser plenamente representado pela linguagem. A doença, nesse sentido, se apresenta como um surgimento do irrepresentável.


As mudanças físicas provocadas pelo câncer e por seus tratamentos — emagrecimento, mutilações, queda dos pelos, ou mudanças nas funções vitais — produzem o efeito de estranhamento. Freud (1919), em seu texto sobre o Unheimlich, define esse sentimento como aquilo que, sendo familiar, torna-se inquietante. 


A doença impõe um real que escapa ao saber médico e ao controle do sujeito. O corpo doente, assim, não é apenas biológico: é um corpo atravessado pela linguagem, pelo desejo e pelo simbólico.


Como lembra Daniel Omar Perez:


“Quando falamos de corpo em psicanálise, falamos de um corpo sexuado, atravessado pela linguagem; falante e excitado. Esse é o corpo da psicanálise: um corpo que fala e que goza.”

É nesse espaço que a psicanálise pode operar: não com a pretensão de curar o corpo biológico, mas oferecendo um lugar de escuta onde o sujeito possa transformar a experiência do adoecimento em palavra, reinscrevendo o sofrimento na ordem simbólica.




Conclusão: lugar do sujeito, cura e escuta

Entre aqueles que atravessaram a experiência do câncer e seguiram vivendo, muitos permanecem marcados pela doença. Nomeados pelo significante “sobrevivente”, podem permanecer presos à experiência do adoecimento, vivendo em função de um corpo lesionado. Essa fixação impede, muitas vezes, a retomada do cotidiano e a reconstrução de laços sociais.


A psicanálise propõe, diante disso, um espaço de escuta singular — um lugar onde o corpo, tomado como falante, possa ser ouvido em suas manifestações sintomáticas, em sua dor e em suas marcas. Trata-se do corpo deslocado, sem lugar, o que Daniel Omar Perez chama de “corpo sem cabimento”

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A psicanálise propõe, diante disso, um espaço de escuta para esse corpo falante e deslocado, um corpo que se expressa por meio do sintoma, da dor e das marcas que o adoecimento inscreve. Trata-se do corpo deslocado, o que Daniel Omar Perez chama de “corpo sem cabimento”


“A psicanálise fica atenta a esse corpo sem lugar, que aparece com um sintoma, somatizando, surtando, deslocado no sistema de produção e de consumo. Não tem cabimento o corpo.”


E ele mesmo lança a pergunta que permanece como convocação clínica:

“Como lidar com o corpo que não tem cabimento, que perturba a nós mesmos?”


Essa interrogação sustenta o campo clínico. O desafio consiste em reinscrever o corpo na linguagem, oferecendo ao sujeito a possibilidade de narrar o vivido, de simbolizar o trauma e de transformar o gozo do sofrimento em palavra.


O corpo, na psicanálise, é simultaneamente lugar de fala e de escuta: o ponto em que o biológico e o simbólico se atravessam, possibilitando que algo da existência seja reconstruído. 


Mais do que buscar a cura do corpo, trata-se de criar as condições para que o sujeito reencontre um sentido em sua experiência, elaborando a dor, a perda e a transformação que o adoecimento impõe. E, assim, siga em existência.




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Transcrição e adaptação:

Renata Suhett é jornalista, especialista em marketing, escrita e mídias sociais. Formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário de Barra Mansa - RJ.


Referências Bibliográficas:


  • Ferreira, Deborah Melo; Castro-Arantes, Juliana Miranda. Câncer e corpo: uma leitura a partir da psicanálise. Analytica, São João del-Rei, v. 3, n. 5, p. 37-71, jul./dez. 2014. Disponível em: https://pepsic.bvsalud.org/pdf/analytica/v3n5/v3n5a04.pdf. Acesso em: 08 out. 2025.

  • Freud, Sigmund. O mal-estar na civilização. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (obra original publicada em 1929).

  • Freud, Sigmund. Projeto para uma psicologia científica. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (obra original de 1895).

  • Foucault, Michel. O nascimento da clínica: uma arqueologia do olhar médico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. (obra original publicada em 1963).

  • Lacan, Jacques. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. (seminário original de 1964).


 
 
 

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