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Manejo Clínico com Crianças: O Amor como Questão Fundante


Pensar o manejo clínico na psicanálise com crianças passa, inevitavelmente, por um elemento central do tratamento analítico: a transferência. 


E se, como nos ensina Freud, a transferência pode assumir a forma de uma relação amorosa — o chamado amor de transferência —, surge então a pergunta: como amam as crianças?


Essa questão dá título à obra Como amam as crianças, organizada por Ana Suy, Michele Kamers e Rosa Maria Marini Mariotto — psicanalista e doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento —, que conduz o novo percurso Manejo Clínico com Crianças, disponível na plataforma ESPECast.


Para Rosa Maria, a psicanálise, embora tenha produzido vasta literatura sobre o amor, concentrou-se sobretudo nas relações entre adultos ou no amor dos adultos pelas crianças. Muito pouco, entretanto, foi discutido sobre o amor a partir da perspectiva da criança.


Essa lacuna abre um campo fértil de investigação, especialmente se considerarmos que o amor é um dos alicerces da constituição psíquica e dos laços sociais. A primeira aula do percurso propõe justamente pensar o amor na infância e suas implicações no manejo clínico.


Neste texto, buscamos retomar algumas dessas formulações, destacando o amor como questão fundante da experiência infantil.


Boa leitura!




O Amor na Perspectiva Infantil

Quando pensamos o amor a partir da infância, falamos de um sentimento e de uma experiência constitutiva. O que, em nós adultos, se apresenta como busca de reconhecimento e afeto, teve suas raízes lançadas nos primeiros tempos de vida. É nesse início que o sujeito se inscreve em uma rede de cuidados, palavras e gestos que lhe permitem “aprender a amar” — se é que podemos falar em aprendizado nesse campo.


Freud já advertia que tanto o amor quanto o luto são vividos na vida adulta a partir de uma posição infantil. Assim, quando amamos, carregamos algo da nossa própria condição de criança: a expectativa, a dependência, a vulnerabilidade. Esse amor primeiro é, ao mesmo tempo, estruturante e fundante: se coloca como condição de possibilidade para a constituição subjetiva.


Falar do amor implica falar do objeto em jogo nessa relação, já que é na articulação entre presença e ausência que se organizam os vínculos afetivos da criança. É nesse ponto que a psicanálise oferece diferentes leituras. De modo geral, ela situa a relação de objeto como relação de falta.


Lacan, no Seminário 4, formaliza essa ideia ao distinguir três modalidades da falta — privação, frustração e castração — mostrando que o sujeito se constitui em torno do impossível de um objeto plenamente acessível. O amor, nesse sentido, aparece como uma resposta criativa diante dessa falta: ao amar, o sujeito busca no outro algo que, em última instância, não se encontra fora de si, mas no campo do desejo.


Contudo, nem todos os autores compartilham dessa concepção. Donald Winnicott, por exemplo, introduz outra perspectiva ao destacar a importância da presentificação. Para ele, o bebê não apenas sofre a ausência do objeto, mas também cria a experiência de sua presença.


Nessa relação de objeto winnicottiana, o bebê presentifica o objeto para a mãe, e a mãe é a presentificação do objeto para o bebê”, aponta Rosa Maria. 


É justamente diante dessa tensão, entre falta e presença, que o amor se torna um campo rico. As promessas amorosas carregam, para o sujeito, a ilusão de felicidade, deslocando o impossível para a ordem do proibido. 


Freud, em O mal-estar na civilização (1930), mostra como o amor assume a função de modelo na busca pela felicidade: amar e ser amado tornam-se ideais que sustentam a vida psíquica e social, ainda que estejam atravessados por frustrações.


Pensar o amor na infância é pensar no afeto e na própria trama em que se joga a constituição do sujeito. É a partir desse ponto de vista que o percurso Manejo Clínico com Crianças se coloca: se o amor funda a experiência infantil, compreender seus contornos é essencial para o manejo clínico.



O amor infantil e sua face narcísica

Discutir o amor na infância implica situá-lo nas diferentes posições subjetivas diante do objeto amoroso. Se, para o adulto, o amor pode encobrir ou revelar a falta, na criança ele se apresenta, em um primeiro momento, como amor narcísico.


Freud, em Introdução ao narcisismo (1914) e em Sobre a Sexualidade feminina (1931), descreve esse amor como ilimitado, exclusivo e fadado ao desapontamento. O bebê investe em si mesmo a projeção idealizada do outro, constituindo o eu ideal. Esse movimento funda os laços amorosos, e carrega, desde o início, a marca de um fracasso: nenhum amor pode alcançar a completude.


Rosa Maria Mariotto lembra que “todo amor infantil, base sobre a qual se sustentam os laços amorosos no adulto, reconhece-se como um amor narcísico: um amor de si mesmo que vai fracassar”. Após esse primeiro tempo de fusão imaginária, a criança confronta-se com a privação e com a impossibilidade de totalizar o amor do outro.


Os primeiros laços amorosos, de caráter oral e narcísico, são inseparáveis do desejo de ser amado. Com o tempo, esses laços deslocam-se para a relação com o objeto do outro, abrindo espaço para experiências de ciúme e inveja, como nas rivalidades entre irmãos.


Surge então um terceiro registro, em que o amor assume sua face simbólica: o amor pelo objeto (a) do outro. A criança passa a ofertar ou recusar objetos como forma de laço, enfrentando de maneira precária a falta estrutural. É nesse ponto que o amor infantil revela sua dimensão de dom.


O objeto de dom é a mais clara notícia que a gente tem de que o objeto é impossível”, observa Mariotto.

O desmame e o desfralde exemplificam esse processo: a mãe deixa de amar apenas o ser do bebê e passa a amar aquilo que ele pode oferecer. As fezes tornam-se, nesse contexto, o primeiro objeto de dom, que mais tarde se desloca para outros: desenhos, notas escolares, presentes. 


O amor infantil, assim, transita do narcisismo para o campo da troca simbólica, delineando as bases do manejo clínico.



Amor, Falta e Manejo Clínico

O amor, na experiência subjetiva, articula-se diretamente à castração, ao gozo e ao sexo. Ao oferecer a sensação de apaziguamento, o amor faz signo: interrompe o deslizamento interminável do desejo e sustenta a possibilidade dos laços amorosos. No entanto, essa promessa de complementaridade está sempre fadada à desilusão, pois a completude absoluta é impossível.


Na relação com a castração, o amor funciona como resposta simbólica à experiência da falta. Ele oferece ao sujeito uma via para lidar com o impossível de totalizar o objeto, conferindo consistência aos vínculos ainda que atravesse frustrações inevitáveis.


Quando articulado ao gozo, o amor revela sua face paradoxal: prazer sofrido e sofrimento prazeroso, excesso que prende o sujeito justamente ao que o faz sofrer. Trata-se de uma dimensão em que o amor se mostra inseparável da dor, sustentando o paradoxo de não abrir mão daquilo que causa sofrimento.

No campo da sexualidade, Freud destacou que o amor se organiza no binômio prazer–desprazer, amor–ódio, ultrapassando os limites das pulsões. Para a criança, esse movimento aparece nos laços narcísicos primordiais, atravessados pela alienação e pela projeção. 


O amor-paixão, que busca fusão e complementaridade, é marcado por essa matriz narcísica: o sujeito ama para ser amado, em continuidade com a célula inaugural da relação mãe–bebê. É nesse primeiro tempo, de amor narcísico e fusional, que a criança se inscreve como objeto de amor — condição necessária para, mais tarde, tornar-se sujeito.




Conclusão

O amor é questão fundante na infância. Ele marca a constituição subjetiva, organiza as primeiras experiências de falta e desejo, e acompanha a criança em sua travessia, articulando-se a momentos cruciais de separação e de troca simbólica.


No manejo clínico com crianças, pensar o amor como eixo estruturante é reconhecer que todo laço amoroso infantil envolve tanto promessa quanto fracasso, tanto oferta quanto recusa, tanto amor quanto ódio. É nesse terreno, entre o amor narcísico e o objeto de dom, que se constroem as condições para a criança se constituir como sujeito.


Do amor narcísico ao objeto de dom, passando pela experiência da falta e da presentificação, abre-se um campo clínico e teórico que permite escutar a criança em sua própria maneira de amar.




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Transcrição e adaptação:

Renata Suhett é jornalista, especialista em marketing, escrita e mídias sociais. Formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário de Barra Mansa - RJ.


 
 
 

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