As Psicoses na Psicanálise: de Freud a Lacan
- ESPEcast
- há 4 dias
- 9 min de leitura
Como a psicanálise compreende a psicose? O que diferencia esse modo de funcionamento psíquico da neurose? Será que todo sujeito psicótico necessariamente surta?
Essas são algumas das perguntas que buscamos explorar neste artigo, inspirado nos episódios #36 e #37 do ESPECast – podcast de Filosofia e Psicanálise, com a participação do professor Daniel Omar Perez e da psicóloga e psicanalista Francis Juliana Fontana.
Nos episódios, somos convidados a percorrer as principais formulações freudianas e lacanianas sobre a psicose — desde os escritos iniciais de Freud até as elaborações posteriores de Lacan e de seus contemporâneos.
A proposta é destacar as diferenças fundamentais da psicose em relação à neurose e refletir sobre suas implicações clínicas.
O que sustenta o sujeito psicótico? Que lugar o analista pode ocupar em uma clínica que se orienta pela ética da psicanálise?
Siga conosco nessa leitura. Boa travessia!
Entre o Eu, o Isso e o Mundo: A Psicose como Organização Subjetiva
Todos nós encontramos maneiras de viver e de lidar com aquilo que nos atravessa. A vida impõe desafios, limites, frustrações — e é diante disso que o psiquismo precisa operar para manter alguma estabilidade. A neurose, por exemplo, é uma das formas subjetivas de enfrentamento dessas exigências.
Mas há também outro caminho possível: a psicose. Trata-se de uma organização psíquica que, embora semelhante à neurose em sua tentativa de dar conta da realidade, difere profundamente quanto à estrutura do conflito.
Em "O Eu e o Isso" (1923), Sigmund Freud apresenta a ideia de um Eu que ocupa uma posição intermediária entre o mundo externo e o mundo interno — esse último representado pelo Isso, sede dos impulsos e desejos. Essa posição torna o Eu um mediador em constante tensão, como ele próprio escreve: o Eu “e seu anseio de servir a todos os seus senhores a um só tempo”.
No texto "Neurose e Psicose" (1924), Freud retoma essa articulação para propor uma distinção estrutural entre essas duas formações clínicas. Segundo ele:
“A neurose é o resultado de um conflito entre o Eu e o seu Isso, ao passo que a psicose é o resultado análogo de uma perturbação semelhante nas relações entre o Eu e o mundo exterior.”
Ou seja, na neurose, o Eu entra em conflito com os impulsos internos (Isso), enquanto na psicose, a perturbação se dá entre o Eu e a realidade externa. A psicose, assim, não se reduz a delírios ou alucinações, mas diz respeito a uma maneira distinta de relação com o simbólico, com o Outro e com o real.
Para a psicanalista Francis Juliana Fontana, é fundamental “fazer esse retorno a Freud”, pois é justamente nele que encontramos o embasamento teórico necessário para o trabalho clínico com as psicoses. Ela ainda destaca que, embora Freud não tenha tido uma experiência clínica com psicóticos, “a teoria dele é muito consistente”.
Essa distinção teórica entre neurose e psicose nos permite entender que a psicose não se define apenas pelo rompimento com a realidade perceptível, mas por um arranjo estrutural na articulação do Eu com os registros que organizam a experiência do sujeito.
Mas o que, afinal, caracteriza estruturalmente a psicose para a psicanálise? E como ela se diferencia da neurose em sua lógica clínica?
Estrutura Psicótica: O que a Psicanálise Entende por Psicose
O termo ‘estruturas clínicas’ foi sistematizado por Jacques Lacan. No entanto, utilizaremos essa nomenclatura também em referência a Freud, a fim de facilitar a compreensão das diferenças fundamentais entre neurose e psicose na teoria psicanalítica.
Embora Freud não tenha trabalhado diretamente com pacientes psicóticos em sua clínica, sua formulação teórica oferece uma base sólida para os desdobramentos elaborados por Lacan.
A partir de Freud, podemos compreender que o principal modo de localizar o sujeito psicótico está na sua relação com a realidade e na ausência de certos elementos estruturantes — sobretudo no que se refere à mediação simbólica.
Na psicose, há uma quebra no funcionamento simbólico. Isso quer dizer que o vínculo com a realidade não se organiza por meio da metáfora e do recalque, como na neurose, mas sim por uma ausência de inscrição do sujeito no campo simbólico. Essa ausência afeta diretamente a forma como a transferência acontece.
A transferência, nesse contexto, se torna um ponto delicado. Freud já indicava que a psicose não opera com a transferência da mesma maneira que a neurose. Em muitos casos, a ausência de uma transferência estruturada do paciente ao analista exige um manejo clínico específico e ético, pois há risco de desencadeamento de sintomas como delírios de perseguição ou de autopunição.
É importante lembrar que, quando Freud afirma que a psicanálise não era uma clínica das psicoses, ele se referia à neurose de transferência — àquela na qual o sujeito projeta seus afetos e significantes sobre o analista, o que, segundo ele, não se realizaria na psicose da mesma forma.
Na estrutura psicótica, a transferência se manifesta por outras vias, como a erotomania ou a vivência persecutória. No primeiro caso, o paciente pode acreditar que o analista está apaixonado por ele; no segundo, pode interpretá-lo como um agente hostil ou controlador.
Em ambos os casos, o analista não deve ocupar nem sustentar esses lugares — é fundamental manejar essa relação com escuta e presença clínicas, sem reforçar a posição delirante.
Freud também distinguia entre neuroses de transferência e neuroses narcísicas, sendo que a psicose se insere nessa segunda categoria. Nas neuroses narcísicas, o investimento libidinal está voltado para o próprio Eu, o que compromete a constituição de um objeto externo de transferência, como o analista.
Por essa razão, Freud afirmava em 1938 que seria “necessário um outro plano para o estudo das psicoses”.
Com essa observação, ele abria espaço para a abordagem posterior de Lacan, que, em sua tese de doutorado (1932), já havia demonstrado interesse clínico e teórico pelo tema — interesse que se desenvolveria mais tarde no Seminário 3: As Psicoses (1955-1956), quando propôs uma leitura estrutural da psicose no campo da psicanálise.
Como afirma o professor Daniel Omar Perez, “não recuar diante das psicoses seria avançar num processo de acolhimento dessa estrutura e tratamento”. Trata-se de uma escuta comprometida com a ética da psicanálise, que não visa à normatização do sujeito, mas à possibilidade de sustentação subjetiva.
Mas como Lacan retoma e reformula a questão da psicose a partir de Freud? E qual é o papel da metáfora paterna e da foraclusão nessa leitura estrutural?
Lacan – Primeiro Ensino: Foraclusão e Metáfora Paterna
Ao longo de seus 26 anos de transmissão, Jacques Lacan foi construindo diferentes noções teóricas sobre o sintoma, o fim de análise e também sobre a psicose. Sua obra não é uniforme: há mudanças significativas entre os primeiros e os últimos momentos de seu ensino.
Durante o episódio do ESPECast, o professor Daniel Omar Perez propõe uma pergunta à psicanalista Francis Juliana Fontana: existe um modo de compreender a psicose nos primeiros anos do ensino de Lacan, e outro nos últimos?
A resposta de Francis Juliana é afirmativa. Segundo ela, no primeiro ensino, Lacan lança fundamentos importantes ao retomar os escritos de Freud, especialmente o caso Schreber, e propõe novas leituras para o desencadeamento da psicose e suas possibilidades de estabilização.
Nesse período, Lacan se dedica a pensar conceitos como identificação imaginária, criações sublimadoras, passagem ao ato e, sobretudo, a metáfora paterna — ou, o que ele chamará mais tarde de metáfora delirante — como formas possíveis de elaboração ou estabilização da psicose.
Nesse primeiro momento, portanto, Lacan está amplamente voltado para pensar o desencadeamento da psicose e suas possíveis estabilizações, oferecendo ao campo clínico novas ferramentas para escutar e compreender esse modo específico de existência.
Mas como Lacan reformula essa concepção nos anos seguintes? E o que muda quando ele passa a pensar a psicose não apenas em termos de estrutura, mas também de gozo e sinthoma?
Lacan – Segundo Ensino: Do Significante ao Sinthoma
A partir dos Seminários 16, 17 e 18, Lacan começa a mudar sua forma de pensar a clínica das psicoses. Ele percebe que os conceitos baseados apenas no significante — que organizavam seu primeiro ensino — já não são suficientes para compreender o funcionamento do sujeito psicótico.
É nesse momento que Lacan introduz a ideia de sinthoma (com “th”), entendendo-o como uma forma única que o sujeito encontra para se manter estável. O sinthoma não é algo que precisa ser curado ou eliminado, mas algo com o qual o sujeito pode fazer um arranjo para viver.
No Seminário 23, Lacan estuda o caso do escritor James Joyce. Ele observa que, embora Joyce tivesse uma estrutura psicótica, nunca chegou a sofrer um surto. Sua escrita teria sido o modo de se estabilizar, criando uma forma de organização que ligava o corpo, a linguagem e a realidade.
Como explica Francis Juliana Fontana, o importante para Lacan nessa fase é entender como o sujeito pode usar seu sintoma a seu favor. No caso de Joyce, foi a literatura que fez esse papel: uma invenção que permitiu a ele dar forma ao seu mundo interno e seguir vivendo.
Essa mudança mostra que a clínica das psicoses não se trata mais de "curar" ou "normalizar", mas de acompanhar o sujeito na construção de uma solução própria.
Mas se a transferência com o psicótico não acontece como na neurose, qual é então o papel do analista nesse tipo de clínica?
O Lugar do Analista na Clínica das Psicoses
Na neurose, o analista ocupa um lugar especial: o do chamado Sujeito Suposto Saber — alguém em quem o paciente aposta que sabe algo sobre seu sofrimento. É por isso que, na neurose, a transferência funciona como motor do tratamento.
Já na psicose, essa posição não se estabelece da mesma forma. O sujeito psicótico muitas vezes não transfere ao analista da maneira tradicional, e isso exige outro tipo de manejo.
Como explica Juliana Fontana, o trabalho com a psicose requer acolhimento e cuidado. O analista não deve apressar interpretações nem forçar avanços no processo. A escuta precisa ser paciente, respeitando o tempo e o modo de funcionamento do sujeito.
Lacan, no Seminário 3, já discute a importância do lugar que o analista ocupa. Mais adiante, no Seminário 23, ele mostra que o que sustenta o sujeito psicótico é uma espécie de organização simbólica do corpo, capaz de manter o real sob certo controle.
Quando o imaginário — nossa imagem de corpo, de unidade — se rompe ou enfraquece, o analista pode funcionar como apoio para que o sujeito construa uma nova borda, um novo modo de se manter inteiro no mundo.
Na clínica das psicoses, portanto, o analista não interpreta como na neurose, mas se faz presente, ajudando o sujeito a criar alguma forma de amarração e sustentação.
Conclusão
Ao longo do artigo, vimos que a psicose, para a psicanálise, não se limita a sintomas como delírios ou alucinações, mas envolve uma relação distinta com a realidade, o simbólico e o Outro.
Freud identificou que, na psicose, o conflito se dá entre o Eu e o mundo externo, o que afeta a transferência e exige uma escuta diferente.
Lacan, por sua vez, aprofunda essa compreensão com a noção de foraclusão e, mais tarde, com o conceito de sinthoma, apontando para a possibilidade de estabilização psíquica por meio de uma invenção singular, como no caso de James Joyce.
Nessa clínica, o analista não se coloca como intérprete do saber, mas como presença ética que sustenta o sujeito em sua forma própria de estar no mundo.
A psicose, assim, nos lembra que a psicanálise não busca normalizar, mas acompanhar o sujeito na construção de saídas viáveis e singulares.
Vamos além nessa conversa?
Nos episódios #36 e #37 do ESPECast, o professor Daniel Omar Perez conversa com a psicanalista Francis Juliana Fontana sobre a psicose na psicanálise, em uma leitura cuidadosa e aprofundada.
A conversa percorre os principais conceitos de Freud e Lacan, destacando as especificidades da estrutura psicótica, o lugar da transferência e o papel do analista diante de sujeitos que inventam saídas singulares para existir..
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Referências Bibliográficas
FREUD, Sigmund. Neurose e psicose (1924). In: ______. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 3: As psicoses (1955-1956). Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 23: O sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
Transcrição e adaptação:
Renata Suhett é jornalista, especialista em marketing, escrita e mídias sociais. Formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário de Barra Mansa - RJ.
Autor do episódio:
Daniel é psicanalista, pesquisador e professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutor e Mestre em Filosofia pela Unicamp, com pós-doutorado na Michigan State University nos EUA e em Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn na Alemanha. Autor de diversos livros de Filosofia e Psicanálise. Obteve o título de licenciado em filosofia em 1992 na Universidade Nacional de Rosario (Argentina). Publicou artigos científicos em revistas nacionais e internacionais, livros e capítulos de livros sobre filosofia e psicanálise.
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