O Fim de Análise: Uma Análise Pode Ser Considerada Concluída?
- ESPEcast
- há 7 minutos
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Ao reconhecermos que a psicanálise é um percurso único — iniciado, em geral, por um sofrimento de ordem psíquica —, e que cada sujeito o atravessa de maneira singular, pensar no fim de uma análise é, de certo modo, retornar à pergunta sobre o que marca o início de um percurso analítico.
Afinal, quando se pode dizer que um tratamento psicanalítico chegou ao fim? Existe apenas um tipo de tratamento analítico? O que significa, de fato, levar uma análise até o fim?
Essas e outras questões fundamentais foram discutidas pelo professor Daniel Omar Perez no episódio #65 do podcast Filosofia e Psicanálise, produzido pelo ESPECast e disponível em nosso canal no YouTube e no Spotify.
Sabemos que a pergunta "quando termina uma análise?" é tudo, menos simples. Por isso, convidamos você a refletir conosco ao longo deste artigo — e, claro, a compartilhar suas impressões nos comentários.
Boa leitura!
O Fim de Análise
Para quem está iniciando seus estudos em teoria e clínica psicanalítica, é comum associar o fim de uma análise à ideia de “cura” ou à simples eliminação dos sintomas.
No entanto, à medida que se avança na escuta da teoria e da clínica, torna-se evidente que essa questão vai muito além do diagnóstico ou de uma melhora aparente. O fim de análise pode ser observado, antes de tudo, como uma questão ética, subjetiva e algumas vezes paradoxal.
Neste artigo, partimos das formulações de Sigmund Freud e atravessamos as reformulações de Jacques Lacan.
Em cada uma dessas perspectivas, o que se revela é que o fim de uma análise não se resume ao encerramento de um processo clínico, mas parece apontar para uma transformação na posição do sujeito diante de si mesmo, do Outro e do desejo.
Freud: análise terminável e interminável?
Em 1937, Freud publica o texto “Análise terminável e interminável”, no qual enfrenta diretamente uma pergunta: quando, afinal, uma análise pode ser considerada terminada?
A resposta, como ele mesmo admite, está longe de ser simples. “Existe algo que se possa chamar de término de uma análise — há alguma possibilidade de levar uma análise a tal término?”, questiona ele logo no início do seu texto, acrescentando: “Temos, primeiro, de decidir o que se quer dizer pela expressão ambígua ‘o término de uma análise’”.
Do ponto de vista prático, Freud oferece um critério inicial, mais direto e clínico. Uma análise poderia ser considerada concluída quando analista e paciente encerram seus encontros porque duas condições básicas foram atendidas.
Nas palavras do próprio Freud:
"Em primeiro lugar, que o paciente não mais esteja sofrendo de seus sintomas e tenha superado suas ansiedades e inibições; em segundo, que o analista julgue que foi tornado consciente tanto material reprimido, que foi explicada tanta coisa ininteligível, que foram vencidas tantas resistências internas, que não há necessidade de temer uma repetição do processo patológico em apreço."
Ainda assim, Freud reconhece que nem sempre é possível atingir esse ponto ideal. Alguns obstáculos podem interromper o processo.
Nesses casos, ele prefere falar de uma análise incompleta, e não exatamente inacabada ou fracassada.
Essa concepção de modo algum esgota a complexidade da questão. Há ainda um segundo sentido para o “fim” de uma análise.
Aqui, Freud indaga se seria possível alcançar, ao fim da análise, uma transformação tão profunda que nenhuma mudança posterior fosse mais necessária:
"Estamos indagando se o analista exerceu uma influência de tão grande consequência sobre o paciente, que não se pode esperar que nenhuma mudança ulterior se realize neste, caso sua análise venha a ser continuada."
A prática clínica nos leva a questionar até que ponto seria possível alcançar esse ideal. A possibilidade de atingir um grau absoluto de “normalidade psíquica” parece estar um pouco distante da realidade de um tratamento. Seja pelas forças pulsionais que insistem, seja pela própria estrutura do inconsciente, algo sempre escapa.
Nesse ponto, vale trazer a reflexão do professor Daniel Omar Perez, no episódio #65 do ESPECast, sobre o tema Fim de Análise:
"Uma psicanálise me parece que acaba, termina um período ou um trecho, quando conclui com uma certa elaboração de uma situação psicanalítica."
O que está em jogo, então, talvez não seja um ponto final, mas um encerramento possível, ético e clínico — uma decisão construída na transferência e sustentada pela elaboração do sujeito.
O fim da análise, em Freud, se desenha como um limite relativo, não como um destino absoluto.
É justamente esse campo de questionamentos que levará Jacques Lacan, alguns anos depois, a retomar essa discussão.
E é a partir da leitura lacaniana que novas possibilidades de pensar o fim da análise emergem — deslocando o eixo da cura para a posição do sujeito em relação ao seu desejo.
Lacan e o reposicionamento do sujeito
Com Jacques Lacan, a questão do fim de análise assume um novo lugar. Ele se afasta da ideia de “cura” como objetivo final do tratamento, deslocando o foco para as transformações na posição subjetiva do analisando.
Para Lacan, o que está em jogo é uma mudança na relação do sujeito com o seu desejo, com o saber inconsciente e com o Outro.
O término da análise, nesse contexto, não acontece quando os sintomas desaparecem ou quando se alcança uma espécie de equilíbrio psíquico. Ele acontece quando o sujeito é capaz de sustentar uma nova posição frente ao que o constitui.
Daniel Perez, ao refletir sobre a teoria lacaniana e os pós-lacanianos, sublinha que o fim da análise envolve “uma mudança de posição subjetiva, uma mudança da posição na qual o sujeito se depara com o gozo, com o real do gozo, com o real do sintoma”.
Esse comentário traz à tona um ponto: no Seminário 5 – As Formações do Inconsciente, Lacan via o sintoma como algo analisável, capaz de ser dissolvido ou transformado. Entretanto, no Seminário 23 – O Sinthoma, ele reconhece que há uma parte do sintoma que é inanalisável, algo que persiste e desafia os esforços da análise.
Daniel observa: “Fazer uma análise é, de algum modo, atravessar nossos processos de identificação, de idealização, fazer cair as idealizações, atravessar o fantasma, para o encontro com o real”.
Essa afirmação reforça a ideia de que o fim da análise não é um ponto de resolução completa, mas sim uma transição para uma nova forma de se lidar com o que permanece inalterado — o real do sintoma.
Conclusão: o que marca o fim?
Podemos considerar que não existe um único modelo de fim de análise. Cada escola, cada autor, e cada caso clínico propõe seus próprios critérios.
Ainda assim, podemos destacar algumas ideias centrais:
Em Freud, o fim está ligado a uma melhora possível, mas sempre parcial.
Em Lacan, o fim é marcado pela mudança ética da posição do sujeito, pela travessia da fantasia.
Na tradição inglesa, o fim se relaciona à adaptação à realidade e ao fortalecimento do eu.
Apesar das diferenças, há um ponto de encontro: o fim da análise não seria um evento externo, mas um marco interno, ético e subjetivo.
Ele ocorre quando o sujeito assume uma nova relação com o seu sofrimento, com seu desejo, com sua falta e com o Outro.
O sofrimento não desaparece por completo, mas passa a ser lido e vivido de outra maneira.
Por isso, talvez possamos dizer que o fim de análise não é um ponto final, mas o início de outra forma de viver — mais singular, mais autêntica, mais livre.
Vamos além nessa conversa?
No episódio #65 do ESPECast, o professor Daniel Omar Perez apresenta essas diferentes visões sobre o fim de análise, explorando desde Freud até Lacan, passando também pela psicanálise inglesa.
Uma conversa rica para quem já estuda psicanálise ou está iniciando esse percurso, com exemplos e provocações que ampliam o olhar clínico e ético.
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Referências Bibliográficas
Freud, S.
FREUD, S. Análise terminável e interminável (1937). In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise II) (1914). In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Lacan, J.
LACAN, J. Seminário, livro 5: As formações do inconsciente (1957-1958). Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
LACAN, J. Seminário, livro 23: O sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
Transcrição e adaptação:
Renata Suhett é jornalista, especialista em marketing, escrita e mídias sociais. Formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário de Barra Mansa - RJ.
Autor do episódio:
Daniel é psicanalista, pesquisador e professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutor e Mestre em Filosofia pela Unicamp, com pós-doutorado na Michigan State University nos EUA e em Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn na Alemanha. Autor de diversos livros de Filosofia e Psicanálise. Obteve o título de licenciado em filosofia em 1992 na Universidade Nacional de Rosario (Argentina). Publicou artigos científicos em revistas nacionais e internacionais, livros e capítulos de livros sobre filosofia e psicanálise.
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