Desejo, logo sou: a soberania do Inconsciente
- ESPEcast
- há 6 dias
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Não lembro nada da minha infância! Essa é uma frase que, volta e meia, os analistas escutam ao longo de um percurso de análise.
Ela aponta para aquilo que Sigmund Freud chamou de amnésia infantil. Mas, para onde vão essas memórias? É um esquecimento permanente? Nós, de fato, apagamos eventos que acontecem conosco?
A psicanálise mostra que não. Esses fragmentos ficam sob a tutela do Inconsciente, essa instância soberana, que conserva absolutamente tudo aquilo que se passa conosco.
E mais: é ele quem, muitas vezes à nossa revelia, orienta nossos pensamentos, escolhas e desejos.
Neste artigo, vamos explorar por que essas lembranças não chegam ao consciente, qual o mecanismo psíquico que impede esse acesso direto, e de que forma é possível acessar essas memórias e seus efeitos por meio do trabalho analítico.
Para isso, nos apoiaremos no novo percurso do professor Antonio Quinet, intitulado “O Inconsciente”, lançado recentemente na plataforma do ESPECast.
Acompanhe conosco e boa leitura!
A lógica do Inconsciente
Logo de saída, Antônio Quinet afirma: o inconsciente é soberano. Essa soberania, que se impõe ao eu consciente, constitui o próprio alicerce da psicanálise. “Uma soberania da ordem de uma ´desrazão´, mas não sem uma lógica”, afirma o professor.
Embora o inconsciente se manifeste fora da análise — nos sonhos, sintomas, chistes e atos falhos —, operar o inconsciente, isto é, trazer à tona essas memórias esquecidas que compõem a história do sujeito, exige um método. Esse método é o tratamento psicanalítico.
A descoberta freudiana foi justamente essa: o inconsciente está articulado ao recalque, mecanismo fundador da neurose, que impede que certas representações insuportáveis cheguem à consciência. Para Freud, o sujeito despende uma quantidade de energia psíquica para manter essas lembranças encobertas.
Mas, paradoxalmente, o recalcado retorna sempre. Ele aparece nos sonhos, nos atos falhos, nos sintomas, nas associações livres, porque o inconsciente não cessa de se manifestar.
Estamos, então, diante de uma questão central para a psicanálise: o sujeito em sofrimento psíquico, atravessado por eventos traumáticos que não consegue lembrar, ou faz questão de esquecer, acaba expressando esses conteúdos por meio de sintomas, que emergem como uma espécie de disfarce.
Surge, assim, a pergunta: “Se está tudo guardado, de que serve a análise?” Se esquecer não causasse sofrimento, estaria tudo em absoluta ordem. Mas não é disso que se trata quando falamos de inconsciente.
Na psicanálise, não há apagamento de representações psíquicas. Cenas traumáticas, palavras ditas, afetos intensos: nada se perde, tudo permanece no inconsciente. No trabalho analítico, tais elementos podem ser esvaziados em seu peso afetivo, reduzindo o sofrimento que provocam.
Antônio Quinet argumenta: “Adianta saber das coisas recalcadas, entender como lidar com isso, esvaziar o sentido delas. Até que algumas deixem de causar sofrimento.” Ao tornar-se nomeável, o conteúdo inconsciente perde parte de sua força de repetição.
Não se trata de lembrar para reconstruir uma história fiel, porque a análise não opera sobre a realidade factual, e sim sobre a realidade psíquica. O que importa é dar forma àquilo que, mesmo esquecido, insiste em nos determinar.
É importante ressaltar que o inconsciente não é um repositório de verdades absolutas. Citando Lacan, Quinet aponta que ele é um campo feito de brancos, omissões, equívocos, ficções e invenções — todos esses elementos compondo a narrativa enigmática da nossa história subjetiva.
A grande virada de Freud está em afirmar: “O homem não é senhor em sua própria casa.” (Freud, 1917/1996, p. 285)
O sujeito da psicanálise é aquele que fala mais do que sabe, deseja mais do que quer, e sofre pelo que não consegue dizer.
Vestígios do Desejo nas manifestações Inconscientes
A elaboração freudiana sobre o inconsciente começa com a análise dos sonhos. O sonho é a via régia de acesso ao inconsciente, porque ali o desejo encontra uma forma de se expressar, ainda que deformada, disfarçada, cifrada.
Mas o desejo também se manifesta fora da análise, nas chamadas formações do inconsciente. São modos pelos quais o desejo reprimido encontra caminhos para retornar.
O que foi rejeitado pela consciência insiste em reaparecer, muitas vezes por meio de sintomas, de repetição, de equívocos na fala.
Freud compara o inconsciente a uma camada arqueológica: algo soterrado, fragmentado, que exige escavação e trabalho interpretativo. Já Lacan coloca que o inconsciente passa pela linguagem, pelas palavras faladas.
Nesse sentido, não se trata apenas de descobrir o que foi enterrado: trata-se de ouvir o que deseja se dizer ali, mesmo sob a forma de silêncio, ausência ou engano.
Por isso, a única regra da análise é a associação livre: deixar o desejo se dizer, sem censura, ainda que sem sentido aparente.
O campo em que Lacan recoloca a psicanálise, após Freud, é o da linguagem como estrutura do desejo.
“O inconsciente é esse capítulo da minha história que está marcado por um branco, ou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado.” (Lacan, Escritos, p. 260)
Esses brancos e mentiras são efeitos da censura. A análise caminha em direção a esses lugares onde o desejo se calou, ou foi encoberto por narrativas falsas.
A verdade do inconsciente é a verdade do desejo inconsciente. E essa verdade pode ser resgatada, a partir de uma construção que surge no próprio ato de dizer. A psicanálise é um trabalho de escuta do desejo, uma ética.
“A psicanálise é um processo de resgate da verdade. Essas verdades que você não quer saber, que às vezes doem, fazem você chorar, mas que é muito melhor você encarar do que ser comandado por uma mentira.” (Antônio Quinet)
O desejo inconsciente, portanto, não é só do sujeito: é também herdado, transmitido, enlaçado a uma rede simbólica que lhe antecede.
A escuta do desejo inconsciente abre caminho para a principal aposta da psicanálise: que o sujeito possa se reapropriar de sua história e se reposicionar diante do que o move.
A análise como ato de desejo
O que a análise busca, sobretudo a de orientação lacaniana, é o desejo do sujeito.Um desejo que é sempre conflituoso, muitas vezes encoberto e que escapa por natureza.
A questão mais importante de quem se analisa é: O que eu quero? Quais são os meus desejos?
Nós nascemos alienados, porque precisamos entrar na linguagem para fazer laço social, para existir na cultura. Mas isso exige escolhas. E escolhas que já estão marcadas pelo Outro.
O inconsciente soberano mostra isso: o sujeito é muito mais falado pelo Outro do que aquele que fala.
A análise é um movimento contra essa alienação. Um processo de emancipação subjetiva.
À medida que o sujeito vai decifrando seu inconsciente, pela associação livre, ele vai se separando desse discurso.
Vai ganhando terreno. Até poder dizer: É isso que eu quero? Esse é mesmo o meu desejo? Desejar, então, já não é repetir. É escolher.
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Transcrição e adaptação:
Renata Suhett é jornalista, especialista em marketing, escrita e mídias sociais. Formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário de Barra Mansa - RJ.
Referências Bibliográficas:
FREUD, Sigmund.
Dora: Fragmento da análise de um caso de histeria (1905). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Totem e tabu (1912). São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
Psicologia das massas e análise do eu (1921). São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
Moisés e o monoteísmo (1939). São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
LACAN, Jacques.
O Seminário, Livro 3: As psicoses (1955-1956). Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
O Seminário, Livro 23: O sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
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