top of page
Foto do escritorESPEcast

Do que sentimos vergonha?


Durante muitos anos entendia-se que Jacques Lacan, em sua psicanálise, havia deixado de lado os afetos, os sentimentos e as emoções, propondo uma psicanálise estruturalista, baseada na lógica do significante, ou seja, praticamente no discurso e que a única coisa que sua psicanálise se preocuparia seria o significante.

O próprio Lacan, no Seminário 10: A Angústia – que é um afeto, considerado aquele que não engana – toma essa questão e diz que em vários momentos trabalhou a questão dos afetos.

No episódio 97 do podcast de Filosofia e Psicanálise, disponível no YouTube e no Spotify, Daniel Omar Perez nos guia numa argumentação a respeito do afeto da vergonha. Como é que sentimos vergonha? O que implica a vergonha?

Boa leitura!

 

O olhar do Outro

A vergonha implica a presença do próprio corpo perante o Outro. De certa forma podemos dizer que que sentimos vergonha porque, de algum modo, nos apropriamos desse corpo, mas não de maneira isolada, e sim em relação com o Outro. Essa relação – entre a presença do corpo e o Outro – é uma relação específica. Nela, o olhar passa a ter um estatuto importante.

Sentimos vergonha diante do olhar do outro, mesmo quando este outro não está presente. A vergonha, então, apareceria nessa relação entre o próprio corpo e o olhar do outro. Isso pode se dar em uma situação onde há um outro semelhante ou onde há um Outro, que não está, mas que nos constitui.

Por isso, então, sentimos vergonha diante do olhar do outro. Muitas vezes esse olhar nos pega de surpresa, em um momento no qual estamos sentindo prazer, ou em situação quando estamos olhando para um objeto de desejo e, imediatamente, ao percebermos o olhar do outro nos observando em nosso momento de prazer nos envergonhamos e somos tomados uma espécie de pudor.

Outro exemplo é quando estamos comendo alguma coisa que nos dá enorme prazer e, quando percebemos que estamos sendo observados, ou seja, quando somos capturados pelo olhar do outro, um sentimento de vergonha toma conta de nós. Tudo acontece como se, quando somos olhados em um momento de realização de um desejo ou de um ato de prazer, nos pegamos capturados em uma situação na qual não deveríamos estar.


A vergonha de não saber

Existe um outro tipo de vergonha que geralmente sentimos nos ambientes de estudo, acadêmicos: a vergonha de não saber. Quando, por exemplo, em uma sala de aula, um professor lhe faz uma pergunta e você não sabe a resposta, pode ser que você sinta vergonha. O não-saber então surge como motivo de vergonha.


Vergonha da imagem que nos devolve o espelho

Uma outra situação que pode fazer aparecer a vergonha é quando a imagem que o espelho nos devolve não condiz com a suposta imagem ideal que nós esperamos que este espelho nos devolva.

“A mesma coisa acontece quando apresentamos um trabalho na universidade, na escola. Apresentamos uma proposta em um trabalho, em um ambiente de trabalho, e pode acontecer uma sensação de vergonha quando a imagem que nos devolve o espelho -  quando o reconhecimento que esperávamos do outro lado -  não aparece. Aí há um outro tipo de situação de vergonha. É a situação na qual o que nos causa vergonha poderia ser essa não correspondência com o ideal.” – Daniel Omar Perez


O que causa vergonha poderia ser essa não correspondência com o ideal. O que causa vergonha é não ser o ideal do eu que deveria, de alguma forma, ser reconhecido no espelho, no reconhecimento, na aprovação do outro. “Esse elemento é interessante porque o ideal tem como contraponto a falta e o elemento da falta é o que causa vergonha.

A falta então, quando aparece na forma de um não saber por exemplo, causa vergonha. A falta, quando aparece em uma imagem do espelho que não é aquela que corresponde ao ideal, causa vergonha. A falta, quando aparece no momento de um ato de realização de um desejo sendo capturado pelo olhar do outro, causa vergonha. A falta, quando aparece no momento de um não reconhecimento perante a apresentação de um trabalho, causa vergonha.

Vergonha do corpo

Nós temos vergonha de apresentar o próprio corpo nu diante do olhar do outro. Neste momento, tentamos encobrir algumas partes. 

Poderíamos pensar que há um ato de moralidade, de normatividade social aqui que nos ordena a cobrir determinadas partes do corpo quando diante do olhar do outro e isso é válido. Mas do ponto de vista psicanalítico, podemos dizer que o que subjaz essa moralidade é, justamente, a impossibilidade de mostrar a falta. 

Em todos os casos onde a vergonha aparece, o que está em jogo é essa impossibilidade de mostrar a falta. O que causa vergonha é nos mostrarmos como sujeitos de uma falta. Ao nos expormos com o corpo nu, estamos nos expondo como sujeitos da falta. Estamos nos expondo como sujeitos sexuados. 


 
Conclusão

Quando somos capturados pelo olhar do outro em um momento em que estamos diante de um objeto de desejo ou comendo uma coisa que causa prazer, aí apresentamos nossa falta. O ideal e o desejo, de algum modo, têm como base a falta, que é constitutiva do sujeito. 

E é isso que, diante do olhar do outro semelhante, ou do grande Outro -  a figura do pai, a figura da mãe, a figura de Deus, a figura de Cristo, a figura de uma moralidade supostamente imperante - nós devemos subtrair desse olhar: aquilo que nos constitui a falta.

É por isso que sentimos vergonha.

A forma de trabalhar a possibilidade de diminuir essa vergonha é reconhecendo a falta como elemento constitutivo.” – conclui Daniel.


Até nosso próximo texto.



Assista ao episódio completo:







 

Quer saber mais?

Conheça nossa plataforma online dedicada à transmissão da psicanálise. São mais de 300 horas de cursos e conteúdos ligados ao campo da psicanálise, produzidos por pesquisadores(as) e analistas que são referência no Brasil e no mundo.



 

Transcrição e adaptação:

Gustavo Espeschit é psicanalista, professor e escritor. Pós-graduado em Fundamentos da Psicanálise: Teoria e Clínica pelo Instituto ESPE/UniFil e Pós-graduado em Clínica Psicanalítica Lacaniana pela mesma instituição. Formado em Letras Inglês/Português com pós-graduação em Filosofia e Metodologia do Ensino de Línguas.


Autor do episódio:

Daniel é psicanalista, pesquisador e professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutor e Mestre em Filosofia pela Unicamp, com pós-doutorado na Michigan State University nos EUA e em Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn na Alemanha. Autor de diversos livros de Filosofia e Psicanálise. Obteve o título de licenciado em filosofia em 1992 na Universidade Nacional de Rosario (Argentina). Publicou artigos científicos em revistas nacionais e internacionais, livros e capítulos de livros sobre filosofia e psicanálise.




601 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

tRABALHO E aMOR

Commenti


bottom of page