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Em Nome do Pai: deslocamentos da função paterna em Freud e Lacan


A psicanálise considera que o pai biológico pode ser uma figura relevante em um processo de análise, assim como qualquer outra presença significativa que apareça na cena transferencial por meio da associação livre.


É comum que, durante um processo de análise, ao trabalhar suas amarras e conflitos pessoais, o analisando traga à tona a figura do pai, seja ele presente ou ausente em sua história de vida.

No entanto, é preciso esclarecer desde o início: para a psicanálise, seja teoria ou clínica, não é do pai biológico que se trata.


Essa distinção nos leva a uma série de questões, que nos lançam em um terreno mais complexo. E talvez a primeira delas seja esta: o que é um pai, no fim das contas?


É essa investigação que nos propomos a acompanhar ao longo deste artigo, inspirado no percurso desenvolvido no ESPECast “O pai para a psicanálise”, com o professor Daniel Omar Perez.


Propomos aqui um percurso pelos textos de Freud e Lacan, para ver como o conceito de paternidade desliza entre figura, função, metáfora e sintoma.


Boa leitura!



Freud e o Pai Biológico: Uma Leitura do Caso Dora

Há diferentes formas de abordar a figura do pai na psicanálise. Um dos pontos de partida possíveis é a perspectiva do relato. Destacamos aqui, sob a ótica da relação pai e filha, um dos mais emblemáticos: o Caso Dora, publicado em 1905. 


A relação dela com o pai emerge como eixo central na configuração de sua posição subjetiva. Freud considera que seus sintomas histéricos revelam conflitos sexuais e afetivos bastante reprimidos. 

A relação com o pai é abalada quando ela descobre o envolvimento extraconjugal dele com a Sra. K., ao mesmo tempo em que se vê alvo das investidas do Sr. K., com o aparente consentimento do pai. 


Essa sucessão de eventos contribui para o desencadeamento dos sintomas histéricos da jovem, uma questão que não aprofundaremos aqui, porque, como mencionamos antes, para a psicanálise não é a figura pessoal do pai que mais importa, mas a função que ele ocupa na psique do sujeito. 


É a partir dessa distinção, entre o pai real e o pai como operador simbólico, que nos voltamos agora aos textos de Freud, nos quais a figura paterna começa a ser pensada em outros termos: como representante da lei, da autoridade, do interdito e da organização do desejo.



Totem e Tabu: o mito do pai e a origem da lei

Em Totem e Tabu (1912), Sigmund Freud investiga as origens do temor, da obediência e da interdição. Diante da impossibilidade de localizar empiricamente a origem da lei, Freud recorre à criação de um mito: o mito do pai primevo, ou pai da horda. Essa figura representa a autoridade originária, dotada de poder absoluto.


Como nos lembra Daniel Perez, “o pai totêmico é aquele pai que tudo pode, que de alguma forma tudo lhe é permitido, e que da mesma maneira mostra um limite, coloca uma barreira à cria”. Esse pacto estabelece uma condição fundamental: “eu protejo e posso prover aquilo que vocês necessitam, desde que vocês obedeçam à lei do pai”, argumenta o professor.


Freud identifica, no totemismo, duas interdições que expressam essa organização do desejo: “não matar o animal totêmico e evitar relações sexuais com os membros do sexo oposto pertencentes ao mesmo totem”. Essas proibições denotam simbolicamente a autoridade do pai, que protege e provê, mas exige como contrapartida a renúncia ao gozo.


A quebra do pacto ocorre quando os filhos, tomados por ódio ao pai castrador, aquele que impõe barreiras à satisfação do desejo, se unem e o matam. O assassinato do pai da horda marca o fim de sua autoridade, mas inaugura algo mais permanente: o sentimento de culpa


É a partir desse afeto que a lei retorna, agora não mais sustentada pela presença do pai vivo, mas pela memória de sua falta. O pai morto torna-se o operador da lei, e a função paterna começa a operar como estrutura simbólica.


Essa construção mítica do pai como origem da lei será reformulada por Freud anos mais tarde, onde ele desloca o problema da autoridade e da obediência para o campo das relações libidinais. 



Psicologia das Massas e Análise do Eu: o pai como líder idealizado

Em Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921), Freud retoma o problema da aliança social, em termos das relações libidinais. A massa, segundo ele, se constitui a partir de uma identificação comum com um substituto do pai, um líder cuja autoridade se sustenta pela idealização compartilhada por cada indivíduo.


Como aponta Daniel Perez, “um grupo se organiza numa fraternidade, mas vinculado a um líder, uma função que organiza esse grupo”, e complementa, dizendo que “Freud entende que os grupos procuram substitutos do pai na igreja, no exército, em organizações coletivas.


Assim, o laço social não depende agora da idealização simbólica de uma figura que ocupa esse lugar. O pai da horda reaparece como Ideal do Eu, sustentando a obediência pelo desejo de manter esse vínculo comum.


Freud afirma: “Evidentemente, a massa se mantém unida graças a algum poder. Mas a que poder deveríamos atribuir este feito senão a Eros, que mantém unido tudo o que há no mundo?” (1921)


Essa reflexão sobre o líder como substituto do pai é retomada  no mito da horda primitiva sob uma chave simbólica, propondo que o assassinato do pai Moisés funda uma religião e toda uma estrutura psíquica e cultural baseada na culpa, na memória e na transmissão. 



Moisés e o Monoteísmo: três ensaios sobre o pai e a origem da cultura

A dinâmica do laço social, criada na idealização de uma figura paterna, é retomada por Freud em Moisés e o Monoteísmo (1939). Nesse texto, Freud reinscreve o mito do pai morto como operador simbólico da cultura. 


Moisés aparece como uma figura de pai que organiza um povo, funda um laço comum e oferece uma referência simbólica à qual todos podem se identificar, mas que, ao mesmo tempo, deve ser assassinado para que a cultura se erga.


Nos três ensaios, Freud reinterpreta os textos da Torá e os eventos da vida de Moisés para mostrar como essa figura funciona como articulador de uma identificação coletiva, sustentada por uma memória traumática: o assassinato do pai.


Essa operação simbólica do pai, descrita por Freud, será retomada por Lacan em sua elaboração sobre a função paterna. 


A função paterna em Lacan: o pai como operador simbólico

Para pensar no pai, pela teoria lacaniana, partimos da ideia de presença de uma ausência, uma função que opera de modo simbólico. 


Podemos tomar como exemplo um pai morto na guerra. Apesar de ausente fisicamente, esse pai exerce uma função, ainda que morto, por ocupar um lugar de ideal. Ele está morto, mas presente na memória e nos significantes que circulam. 


Isso indica um pai imaginário, que funciona como figura de liderança sustentada por uma projeção do ideal do eu no outro. Esse pai ocupa um lugar idealizado, e essa idealização sustenta o vínculo libidinal.


Já o pai simbólico cumpre uma função paterna, estando ou não presente de modo empírico. Não importa estar lá, e sim que ele opere. 


Para Daniel Perez, “Lacan introduz com muito cuidado essa função paterna como uma função simbólica, como um modo de ordenar. Ele articula essas noções para se referir de algum modo a um elemento que permite ordenar simbolicamente esse sujeito, numa relação de castração”.


O pai aparece em vários momentos na obra de Lacan, e Daniel destaca o Seminário 3, onde Lacan define as estruturas clínicas a partir do modo como o sujeito se posiciona diante da castração. 


É ali que a função paterna se articula com a introdução do sujeito na linguagem, e é essa operação que separa o bebê da mãe, possibilitando sua inscrição numa estrutura”, argumenta Daniel.


É fundamental sublinhar: trata-se de uma função, não de um sujeito. Embora essa função possa se encarnar em uma pessoa, em alguém que esteja na cena, isso não é uma exigência. O que está em jogo é o efeito simbólico que separa, nomeia, barra.


Podemos pensar, então, em diferentes formas de pai:


1. O pai biológico, como dado empírico,

2. O pai imaginário, como figura idealizada,

3. O pai simbólico, como função de ordenação.


Acontece que a concepção lacaniana da função paterna não permanece estática. Lacan opera uma torção no seu ensino: o pai passará a ser pensado em termos de versões e de sintoma.



O Pai como Sintoma: o último ensino de Lacan

Durante boa parte de seu ensino, Lacan sustentou a importância do Nome-do-Pai, da função e metáfora paterna. O pai operava como aquele que corta, ordena e inscreve o sujeito numa ordem simbólica, marcada pela castração. 


Contudo, a partir de meados da década de 1960, Lacan introduz a ideia de que não haveria um único Nome-do-Pai, mas versões possíveis. A lógica dialética que organizava seus primeiros escritos cede lugar a uma lógica matemática, centrada na teoria dos nós. 


No Seminário 23, O Sinthoma (1975-76), o pai já não aparece mais como aquele que articula ou simboliza. Aponta Daniel, que “o real, simbólico e imaginário, que poderíamos também pensar o pai, nesses termos, agora na teoria dos nós, Lacan vai dizer que não teria propriamente o pai, senão que teria versões do pai. E que o sintoma seria as versões do pai”, conclui.


Se antes a função paterna sustentava a estrutura, agora é o sintoma que a mantém.


Nesse novo arranjo o pai se transforma. Em vez de um operador da castração, o pai passa a ser lido como uma amarração, uma forma de fazer laço. Como afirma Lacan (1975), “o pai é um sintoma”.



CoNCLUSÃO

Afinal, o que é o pai? Não uma figura fixa, nem um modelo universal. Em Freud, é mito e estrutura; em Lacan, torna-se função, metáfora, suplência e, por fim, sintoma. 


O pai é o modo singular pelo qual cada sujeito amarra o real, o simbólico e o imaginário, ou, quando falha, é o próprio sujeito que precisa inventar uma solução.



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Transcrição e adaptação:

Renata Suhett é jornalista, especialista em marketing, escrita e mídias sociais. Formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário de Barra Mansa - RJ.


Referências Bibliográficas: FREUD, Sigmund.

  • Dora: Fragmento da análise de um caso de histeria (1905). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

  • Totem e tabu (1912). São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

  • Psicologia das massas e análise do eu (1921). São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

  • Moisés e o monoteísmo (1939). São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

LACAN, Jacques.

  • O Seminário, Livro 3: As psicoses (1955-1956). Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

  • O Seminário, Livro 23: O sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

 
 
 

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