Psicanálise e Linguística: Introdução aos Estudos da Linguagem
- ESPEcast
- há 8 horas
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Ao refletirmos sobre o ser humano e sua relação com a linguagem, uma pergunta inevitavelmente surge: falamos desde sempre? Ou será que a linguagem é uma construção que se desenvolveu ao longo do tempo, acompanhando a própria trajetória da humanidade? E, indo além: qual é o papel da linguagem na escuta analítica?
A interlocução com a linguística permitiu à psicanálise, especialmente à psicanálise lacaniana, aprofundar sua compreensão do sujeito, do desejo e do sintoma.
Mais do que uma ferramenta de comunicação, a linguagem torna-se, nesse contexto, o próprio tecido da experiência analítica. Para o Dr. Jacques Lacan, ela ocupa um lugar central: articula e sustenta o eixo de uma análise, o desejo.
Lacan afirma, no texto O Simbólico, o Imaginário e o Real (1953, p. 15), presente no livro Nomes do Pai (Ed. Zahar): “Falar já é introduzir-se no objeto da experiência analítica.”
Neste artigo, vamos percorrer alguns marcos históricos e simbólicos da linguagem, explorando como ela foi se tornando mais complexa ao longo do tempo, e como esse percurso contribuiu para a construção da escuta analítica tal como a entendemos hoje.
A linguagem como construção histórica e coletiva
Antes mesmo de existirem teorias sobre a linguagem, havia o ser humano tentando sobreviver, se comunicar, se agrupar.
A fala, nesse contexto, não surge pronta, ela é fruto de uma longa elaboração coletiva, atravessada pela necessidade de nomear, relatar e inscrever a experiência vivida.
Para a professora Ana Josefina Ferrari, doutora em linguística, é importante compreender a linguagem não como algo dado ou eterno, mas como uma construção progressiva, que acompanha o desenvolvimento da espécie humana e suas formas de se relacionar com o mundo. Como ela afirma:
“Muitas vezes a gente se encontra num espaço, num agora, que não nos propicia pensar no que existia antes. Pensamos: todo mundo fala, sempre falou e é assim. Mas, na verdade, não foi sempre assim. O homem nem sempre falou.”
A fala é também um caminho para lidar com aquilo que nos escapa: o desejo, o trauma, o sintoma. É a partir desse olhar, que une linguística e psicanálise, que podemos nos aprofundar na ideia de linguagem como estrutura.
Linguagem: sempre existiu?
Quando olhamos para a história da humanidade, é comum imaginar que o ser humano sempre se comunicou como fazemos hoje. No entanto, essa suposição é ilusória. A fala, tal como a conhecemos, é resultado de um processo histórico complexo e gradual.
Isso nos convida a pensar: como a linguagem surgiu? Teria o homo erectus já saído dizendo palavras por aí? A professora Ana Ferrari propõe um olhar simbólico sobre essa evolução, remontando aos primeiros agrupamentos humanos.
Nesses tempos iniciais, predominava uma comunicação instintiva e reativa: um grito, um gemido, um gesto.
Tomemos um exemplo: um homem avista um animal perigoso e emite um som. Esse som ainda não é uma palavra, mas já representa uma tentativa inicial de nomear, de indicar algo ao outro. Como explica a professora:
“A gente vai encontrar um homem que vê um bicho que o ameaça, ele aponta o animal e emite um tipo de som específico [...] com o passar do tempo, vai se transformar em palavra.”
A linguagem, portanto, não surge do nada. Ela é uma construção humana, desenvolvida aos poucos como resposta à necessidade de sobrevivência, de orientação no mundo e de convivência em sociedade.
E é justamente essa capacidade de formulação que vai nos diferenciar dos animais - que não falam, apenas se comunicam.
As cavernas falam: o nascimento da narrativa
Em algum momento, nossos ancestrais deixaram de apenas reagir aos perigos imediatos. Já não bastava ver um animal e emitir um grito de alerta — surgia agora o impulso de contar o que foi visto, de compartilhar a experiência com os outros.
É nesse instante que nasce a narrativa: a linguagem assume um papel expressivo, torna-se necessário relatar e preservar a memória partilhada. É com ela que surge uma das primeiras manifestações simbólicas da humanidade: a arte rupestre.
Conta-nos a professora Ana Josefina Ferrari:
“O homem sai da caverna... sente a necessidade de contar, avisar, relatar aos outros o que viu.”
Esse gesto inaugura um movimento, não apenas físico, mas também simbólico. Um movimento que pode ser observado nas pinturas rupestres, cuidadosamente elaboradas naquele tempo.
As imagens nas paredes das cavernas, como demonstram os estudos do linguista britânico Geoffrey Sampson, não são simples representações estáticas. Elas expressam movimento, repetição, sequência.
São imagens que falam, que revelam a intenção de dizer algo a alguém, de organizar a experiência em forma de história. Há ali narrativa, continuidade, desejo de dizer.
Essas primeiras imagens são, talvez, o embrião da linguagem como a compreendemos hoje: uma construção simbólica que nos permite lembrar, antecipar, desejar e, sobretudo, compartilhar o vivido com o outro.
Linguagem: um problema humano
Se a linguagem não é instintiva, nem automática, então o que ela é? Para a professora Ana Ferrari:
“A linguagem não é espontânea, ela é um problema. Na verdade, o ser humano tem um problema com a linguagem.”
Essa frase é reveladora e ressoa profundamente com os questionamentos da psicanálise.
A linguagem surge porque há algo que precisa ser dito, mas que ainda não tem forma.
O homem primitivo, assim como a criança pequena, grunhe, balbucia, aponta, tentando significar algo que ainda não pode nomear. É dessa tentativa que surge o símbolo, o signo, a palavra.
Com o tempo, a capacidade simbólica cresce. Vamos criando formas mais complexas de representar o mundo e de nos representarmos.
A linguagem se torna cada vez mais codificada, mais rica. E, ao mesmo tempo, mais cheia de equívocos e possibilidades.
Muito antes de Saussure: linguagem como inquietação
Antes de existir a linguística como ciência, antes de nomes como Ferdinand de Saussure entrarem em cena, o ser humano já se perguntava o que é a linguagem, como ela funciona, o que ela nos faz e o que fazemos com ela. Conta-nos Ana Ferrari:
“Antes de entrar nesse sistema conceitual elaborado pelo pai da linguística, Ferdinand Saussure [...] a gente tem que entrar nos problemas que o ser humano se coloca perante aquilo que se chama língua, ou linguagem.”
Essa inquietação é também o ponto de partida de muitos psicanalistas. Afinal, o sujeito do inconsciente é um sujeito falante, atravessado pela linguagem. E é nessa linguagem — falada, silenciada ou equivocada, que muitas vezes se revela o sofrimento psíquico.
Entre humanos, a resposta nunca é garantida. A fala se dirige a alguém e esse alguém pode ou não responder, pode entender de outra forma, pode discordar.
“Na linguagem humana, o que a gente tem, é uma resposta. Aqui, na capacidade de interlocução, reside a principal diferença da comunicação e linguagem.” - Ana Ferrari
É essa abertura para o outro que torna a linguagem humana tão rica e tão complexa. E é também por isso que ela é o lugar privilegiado de escuta e interpretação na clínica psicanalítica.
Conclusão: linguagem, invenção de nós mesmos
A fala da professora Ana Josefina Ferrari nos mostra que a linguagem não é algo pronto ou acabado, ela é sempre uma construção em movimento. Atravessa-nos, forma-nos e, muitas vezes, também nos escapa.
Do primeiro grito ao discurso mais elaborado, a linguagem carrega em si nossa história, nossos conflitos, nossas dores e desejos. Ela é o fio que costura o humano não como resposta, mas como pergunta constante.
Para quem inicia seus estudos em psicanálise, compreender que a linguagem é um problema e não uma solução é um passo essencial. É na fala, mas também no silêncio, que o sujeito se revela. E é pela escuta que a psicanálise opera.
Esse é apenas o começo de um caminho mais amplo de investigação.
Este artigo foi escrito com base no percurso Introdução aos Estudos da Linguagem, ministrado pela professora Ana Ferrari. Aqui, exploramos apenas os primeiros passos do módulo inicial, intitulado Quando Começamos a Falar.
Mas o percurso segue adiante e o convite está feito: aprofunde-se nesses estudos que atravessam a oratória, a retórica, a filologia, a gramática, a linguística como ciência e o signo linguístico. Tudo isso é conduzido com profundidade e sensibilidade pela professora Ana.
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Transcrição e adaptação:
Renata Suhett é jornalista, especialista em marketing, escrita e mídias sociais. Formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário de Barra Mansa - RJ.
Autor do episódio:
Daniel é psicanalista, pesquisador e professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutor e Mestre em Filosofia pela Unicamp, com pós-doutorado na Michigan State University nos EUA e em Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn na Alemanha. Autor de diversos livros de Filosofia e Psicanálise. Obteve o título de licenciado em filosofia em 1992 na Universidade Nacional de Rosario (Argentina). Publicou artigos científicos em revistas nacionais e internacionais, livros e capítulos de livros sobre filosofia e psicanálise.
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