Machismo na Psicanálise: Como a História Apaga as Contribuições Femininas
- ESPEcast

- 29 de ago.
- 6 min de leitura
Atualizado: 5 de set.
O interesse por revisitar a presença das mulheres na história da psicanálise surgiu a partir de reflexões sobre como determinados nomes femininos, apesar de terem produzido contribuições fundamentais para a teoria e a prática, permanecem ausentes das narrativas oficiais.
A história da psicanálise, tal como é comumente transmitida, privilegia figuras masculinas e relega as mulheres a notas de rodapé ou a papéis secundários, obscurecendo sua participação ativa no desenvolvimento do campo.
Esse apagamento não pode ser reduzido a um acidente histórico: trata-se de um sintoma de uma estrutura machista que, desde o início, atravessa a transmissão da psicanálise e que ainda encontra ressonância na forma como a disciplina é ensinada e reproduzida atualmente.
Como sugere Antônio Quinet, no percurso O Inconsciente, na plataforma do ESPECast, estamos diante de uma lógica de transmissão que incorpora, de modo inconsciente, formas de machismo, racismo e misoginia, perpetuando desigualdades simbólicas e institucionais.
A questão central que orienta este texto é: na psicanálise que praticamos e transmitimos hoje, estamos efetivamente construindo novos caminhos teóricos e clínicos ou apenas repetindo um legado histórico marcado pela exclusão das mulheres?
Para começar a responder, é preciso revisitar a formação da psicanálise e compreender como esse apagamento foi produzido.
O apagamento das mulheres na história da psicanálise
A história da psicanálise costuma ser narrada como uma sucessão de grandes nomes masculinos: Sigmund Freud, Jacques Lacan, Sándor Ferenczi, Donald Winnicott. É inegável o valor de suas contribuições. Mas seria legítimo reduzir a psicanálise apenas a esses homens?
Ao revisitar seu percurso, torna-se evidente que não. A pesquisa histórica revela uma constelação de autoras brilhantes, criadoras de conceitos fundamentais, que, no entanto, foram empurradas para as margens ou relegadas a notas de rodapé.
Entre os nomes mais reconhecidos encontram-se Anna Freud, Melanie Klein e Françoise Dolto — mulheres que, apesar das barreiras de gênero, conseguiram consolidar suas teorias na clínica psicanalítica.
Entretanto, outras figuras igualmente decisivas, como Emma Eckstein, Margarete Hilferding, Eugenia Sokolnicka, Barbara Low, Hermine Hug-Hellmuth, Lou Andreas-Salomé, Karen Horney e Ruth Mack Brunswick, permaneceram apagadas das narrativas oficiais.
Muitas dessas autoras anteciparam ideias que mais tarde se tornariam centrais em Freud ou Lacan, mas tiveram suas contribuições obscurecidas ou incorporadas sem o devido reconhecimento.
Resgatar essas histórias é um exercício histórico e crítico, uma forma de interrogar o presente da psicanálise e decidir se queremos continuar repetindo o legado do apagamento ou renová-la, tornando-a mais plural, verdadeira e fiel ao inconsciente que lhe deu origem.
Estruturas de gênero e o silenciamento
A psicanálise nasceu no final do século XIX, um período marcado por estruturas patriarcais e desigualdades de gênero. Não é surpresa, portanto, que as mulheres que se aventuraram nesse território tenham enfrentado, além dos desafios teóricos e clínicos, barreiras sociais e institucionais que limitavam sua visibilidade e reconhecimento.
Esse cenário levou muitas psicanalistas a serem subestimadas ou desacreditadas. Suas ideias, quando aproveitadas, apareciam depois incorporadas às teorias de colegas homens sem o devido crédito.
Hoje, pesquisadoras como Fátima Caropreso e Renata Cronenberg, têm se dedicado a revisitar essa narrativa. Ao trazer à luz cartas, textos e manuscritos, essas investigações revelam que a história da psicanálise é muito mais complexa do que as versões simplificadas que herdamos.
Entre as figuras esquecidas, destaca-se Margarete Hilferding. Sua trajetória nos ajuda a compreender, de forma exemplar, como se dá o mecanismo do apagamento na cena da psicanálise.
Margarete Hilferding: a primeira mulher na Sociedade Psicanalítica de Viena
O ingresso de Margarete Hilferding na Sociedade Psicanalítica de Viena, em 1910, não foi um acontecimento simples ou pacífico. Sua admissão revelou, de forma explícita, as tensões de gênero que atravessavam o movimento psicanalítico nascente.
Alguns anos antes, em 1907, Fritz Wittels havia apresentado à Sociedade o texto Female Physicians, no qual afirmava que a verdadeira vocação das mulheres era “atrair homens” e que sua presença na medicina era uma ameaça. Para ele, a mulher não seria capaz de compreender a psique masculina e, caso alcançasse cargos de prestígio, inevitavelmente abusaria do poder ¹.
As reações ao texto foram diversas: enquanto parte do grupo concordava, outros — como Otto Rank e Alfred Adler — apontaram o caráter misógino e infundado dessas afirmações. Freud, por sua vez, oscilava: embora criticasse os excessos de Wittels, deixava escapar sua própria reserva quanto ao valor do estudo acadêmico para as mulheres.
Esse contexto ajuda a compreender a resistência ao nome de Hilferding. Quando Paul Federn propôs sua admissão em abril de 1910, a discussão foi marcada por posições divididas: Isidor Sadger se manifestou abertamente contra a presença de mulheres, enquanto Adler defendeu sua legitimidade.
Freud argumentou que seria contraditório excluí-las por princípio, e uma votação preliminar mostrou três votos contrários em onze. Após adiamentos e negociações, Hilferding foi admitida em 27 de abril, com 12 votos favoráveis e apenas 2 contrários.
Sua permanência na Sociedade, contudo, foi breve. Entre maio de 1910 e outubro de 1911, participou das reuniões e apresentou apenas um trabalho: Sobre as bases do amor materno.
Nesse texto, questionava a noção, então quase inquestionável, de que o amor materno fosse um instinto natural. Observava que, em muitos casos, mães aguardavam ansiosas a chegada do filho, mas experimentavam frustração após o nascimento, podendo rejeitá-lo ou tratá-lo com hostilidade. Para Hilferding, o amor materno não era inato, mas emergia do contato físico e das experiências corporais compartilhadas entre mãe e bebê.
Essa hipótese, radical para a época, foi recebida com desconfiança. Parte dos colegas desviava a discussão para a figura paterna ou colocava em dúvida suas conclusões. Freud reconheceu o mérito do esforço, destacando que Hilferding abordara um tema até então negligenciado pela psicanálise, mas discordava de pontos centrais. Adler, por sua vez, valorizou a dimensão de hostilidade que ela identificava na relação mãe-filho. Ao final, a própria Hilferding declarou ter sido parcialmente incompreendida.
Pouco depois, alinhada ao grupo de Adler, desligou-se da Sociedade de Viena. Sua reflexão sobre a maternidade, entretanto, não desapareceu: Hilferding continuou pesquisando o tema na Sociedade de Psicologia Individual, da qual se tornou presidente após a Primeira Guerra. Ainda assim, sua contribuição permaneceu obscurecida e só muito mais tarde conceitos semelhantes seriam retomados por outras psicanalistas, sem referência ao seu pioneirismo.
O desfecho de sua vida foi trágico: deportada durante a Segunda Guerra Mundial, Hilferding morreu em um campo de concentração em 1942. Seu percurso sintetiza a experiência de tantas mulheres nos primórdios da psicanálise: pioneirismo teórico, resistência masculina, marginalização institucional e esquecimento histórico.
Conclusão
A trajetória de Margarete Hilferding revela a história de uma psicanalista pioneira que ousou desafiar os limites impostos pelo patriarcado de sua época. Ela evidencia o funcionamento do próprio mecanismo de apagamento que atravessa a história da psicanálise: resistência à entrada das mulheres, desqualificação de suas ideias, apropriação teórica sem reconhecimento e, por fim, esquecimento institucional.
Responder à pergunta que dá título a este artigo exige reconhecer que esse apagamento não foi um acidente, mas parte de uma lógica estrutural. Uma lógica que, em grande medida, ainda persiste na forma como a psicanálise é transmitida: repetindo padrões masculinos, privilegiando nomes já consagrados e relegando as mulheres ao segundo plano.
Resgatar figuras como Hilferding significa fazer justiça histórica, e também interrogar os fundamentos da psicanálise que praticamos hoje. O desafio é historiográfico, clínico e ético: construir uma psicanálise mais plural, que reconheça sua dívida com as mulheres que a fundaram e que permita, finalmente, uma transmissão livre das amarras do machismo.
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Transcrição e adaptação:
Renata Suhett é jornalista, especialista em marketing, escrita e mídias sociais. Formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário de Barra Mansa - RJ.
Referências Bibliográficas:
¹ NUNBERG, H.; FEDERN, E. Minutes of the Vienna Psychoanalytic Society (Vol. 1). New York: International Universities Press, 1962, p. 196.
SILVA, Marcus Vinicius Neto; ESPÍRITO SANTO, Érica Silva. A história das primeiras mulheres psicanalistas do início do século XX. [S.l.: s.n.], 2015. Disponível em: https://core.ac.uk/download/pdf/231230489.pdf. Acesso em: 16 ago. 2025.


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