Artigo Um da série Psicanálise e Metapsicologia, baseado no percurso de mesmo nome já disponível na plataforma ESPEcast
O percurso “Metapsicologia e Clínica Psicanalítica”, ministrado por Tiago Ravanello dentro da plataforma ESPECast, tem como propósito oferecer uma introdução abrangente à teoria e clínica, utilizando os textos fundamentais de Freud como base.
A intenção central é proporcionar uma leitura sólida dos conceitos fundamentais da teoria freudiana, adaptando-os e relacionando-os às discussões clínicas contemporâneas. Este enfoque representa um retorno ao essencial em Freud, buscando fornecer suporte substancial às experiências clínicas e aos desafios enfrentados pela nossa atualidade.
O que se segue neste artigo é a introdução a esse percurso, como apresentada pelo professor Tiago, no primeiro encontro, intitulado “Psicanálise e Metapsicologia”.
Boa leitura.
Introdução
Este percurso propõe fazer uma introdução ao pensamento de Freud pensada a partir de um conjunto de textos fundamentais de Freud, datados entre 1914 a 1917, intitulados Artigos sobre Metapsicologia: “O Recalque”, “O Inconsciente”, “As Pulsões e suas Vicissitudes”, “Luto e Melancolia” e “Suplemento Psicológico à Teoria dos Sonhos”
“A ideia é que, com esse percurso, nós possamos fazer uma revisão dos principais conceitos de Freud, termos uma noção mais ampla a respeito de como esse emaranhado de conceitos, como essa trama conceitual, se amarra a partir de fundamentos, a partir de conceitos básicos da teoria e clínica psicanalítica. ” – nos orienta professor Ravanello. – “Nós vamos abordar esses conceitos, obviamente, em função do olhar que eu lanço sobre a psicanálise, que tem a ver com a minha formação e com o conjunto de pesquisas com o qual eu trabalho. A gente vai fazer isso a partir de um olhar lacaniano. Então, o recorte que a gente vai fazer de Freud é um recorte que vai priorizar, por exemplo, uma concepção mais ampla de um inconsciente estruturado como uma linguagem. E, a partir disso, a gente vai tentar abordar algumas questões que têm a ver com a estrutura do pensamento freudiano, que tem a ver com a relação da clínica psicanalítica com outras formas de compreensão da clínica ou da psicoterapia ou do que seja uma psicanálise.” – acrescenta.
Freud “de trás pra frente”.
A proposta é pensar o retorno a Freud lacaniano como uma espécie de Freud lido “de trás pra frente”, quer dizer, lido à luz da teoria lacaniana, incorporando a essa leitura elementos que se tornam fundamentais na teoria final de Freud - e foram introduzidos após este período - como a questão da lei do princípio do prazer, a compulsão à repetição, a concepção da pulsão de morte ou até mesmo a sua segunda tópica. Pensar um Freud do final reencontrando as suas bases, retornando para “A Interpretação dos Sonhos”, para a “Psicopatologia da Vida Cotidiana”, para “O Chiste e suas Relações com o Inconsciente”.
Metapsicologia como ponto de encontro
Onde seria a mediana desse caminho?
Onde seria o ponto de encontro central de um Freud que mostra a que veio e aonde vai?
A Metapsicologia.
Metapsicologia que pode ser compreendida de diferentes formas. Podemos entende-la como um arcabouço teórico, ou seja, como um esforço metodológico de fazer com que os principais conceitos de uma teoria estejam ordenados e organizados dentro de uma metodologia.
É importante entender então que quando se fala de método psicanalítico não estamos falando de técnica psicanalítica. Quando estamos falando de método em psicanálise, não estamos dando conta, para citar alguns exemplos, de como se interpreta um sonho, de como um analista deve se colocar diante do fenômeno da transferência, de como ele deve se portar ou o que responder quando um paciente disser algo. Método em psicanálise se refere às questões que são possíveis de serem colocadas a partir da psicanálise, ou seja, são os regimes de raciocínio que permitem que determinadas questões possam ser colocadas ou não.
Em suma: quando falamos de método em psicanálise estamos falando sobre aquilo a que uma psicanálise se propõe, sobre aquilo à que ela serve. Ao falarmos, portanto, de uma metapsicologia freudiana, estamos propondo um arcabouço tanto teórico quanto metodológico.
Assim sendo, após redigir, entre 1911 e 1913, os chamados Artigos sobre a Técnica - onde ele então trata do manejo da transferência, escreve sobre como se começa um tratamento, como se faz a cobrança e qual a função do pagamento dentro deste tratamento, discorre sobre a posição que o analista deve assumir na transferência, como se encaminham esses casos, dentre outras coisas – Freud vai questionar sobre quais questões uma psicanálise pode ou não propor e redige então este conjunto de artigos que são uma espécie de recorte, dentro do universo de pesquisa possível, onde esse questionamento tenta ser respondido.
Freud explica tudo?
Nos diz o professor Ravanello:
“Então, a gente pode eventualmente considerar que determinadas questões que chegam à clínica - ou demandas feitas por um determinado analisando ou analisanda - elas podem ser acolhidas pelo método ou não. Justamente a ideia de método é uma concepção que implica na ideia de que há limites a esse saber científico. Freud explica tudo? Obviamente não.”
Pensar que Freud explica tudo é sair do regime do método e deixar de pensar a psicanálise por uma concepção de ciência e passar a considera-la como um movimento próximo da religião, da política, da arte, ou seja, em outra estrutura de raciocínio que não a científica.
“O que torna a psicanálise uma ciência é justamente o rigor de seu método e a testagem, ou seja, a condição de ter sido colocada à prova por um século de pesquisas, de produções teóricas, de produções científicas, etc.” – Tiago Ravanello.
Os textos metapsicológicos então são os artigos onde Freud vai cernir e delimitar o campo do inconsciente e os fenômenos relativos a ele, tais como a transferência e o recalque, por exemplo, tais como os nossos afetos, dentre outros elementos sobre os quais a psicanálise teria algo a dizer ou uma clínica psicanalítica teria algo a oferecer. Caso contrário teria que ser necessários pensarmos outro método para abordar esses elementos e essas questões.
Ravanello nos pergunta:
“Quando um analisando - ou analisanda - procura um atendimento clínico e tem como uma questão, por exemplo, uma doença orgânica, uma doença de causalidade orgânica, de reconhecimento por exames, por métodos da medicina que delimitam que se trata efetivamente de uma doença orgânica, a psicanálise teria algo a oferecer nesse tratamento?”
E nos responde:
“Sim e não. Ela teria a oferecer a face subjetiva do sofrimento que emana da condição de ser um sujeito marcado pelos discursos ou por uma experiência de corpo que está em sofrimento, mas ela não tem condições, enquanto método, de fazer uma modificação direta sobre o funcionamento orgânico.”
Assim sendo, a ideia de método implica, justamente, na limitação do saber, característico da ciência, como compreendida na contemporaneidade. Este conjunto de textos, portanto, que delimita um arcabouço teórico e metodológico, é também uma proposta de Freud de se pensar essa metapsicologia como um modelo de pesquisa.
O que seria um modelo de pesquisa metapsicológica?
“Isso tem a ver com um certo sentido, orientação ou interesse ou ainda uma política da pesquisa psicanalítica, que é tentar considerar os fenômenos aos quais ela visa uma leitura, uma abordagem, em termos de economia, topografia e dinâmica.” – responde professor Ravanello.
Fazer uma descrição metapsicológica – que é para Freud o objetivo de uma pesquisa psicanalítica – é se propor a entender, compreender, explicar estes fenômenos em termos topográficos, econômicos e dinâmicos.
Descrição em termos topográficos
Em psicanálise freudiana existem duas topografias, a saber, a primeira tópica – a divisão entre inconsciente, pré-consciente e consciente – e a segunda tópica que sobrepõe essa primeira e coloca a divisão entre ego, id e superego. Frisa-se que a segunda tópica não substitui a primeira, mas se sobrepõe a ela, tornando a topografia freudiana ainda mais complexa, permitindo com que ela trabalhe com questões ainda mais complexas.
Ravanello nos orienta para o fato de que a essas duas tópicas freudianas pode-se acrescentar uma terceira, agora em Jacques Lacan, que seria essa mesma organização, mas em termos de registros. “Ela não é necessariamente uma tópica, ela é uma organização em termos de registros, mas que nos auxilia a pensar esses modelos da divisão do sujeito, que é aquilo que Lacan vai chamar de a sua heresia, ou seja, um R-S-I, real, simbólico e imaginário.” – explica.
Essas articulações vão permitir ao psicanalista pensar um sujeito em suas divisões e este é um dos fundamentos mais absolutamente importantes da lógica do raciocínio freudiano. Em assim sendo, toda vez que se fala de uma proposta de uma psicanálise integrativa, que veja o sujeito em seu todo, de uma forma holística, se está fazendo um raciocínio fora do método e pensando em uma psicanálise que contradiz seus próprios fundamentos. Isso porque o fundamento freudiano é o de um sujeito dividido, seja em inconsciente, pré-consciente e consciente, em id, ego e superego ou, lacanianamente, em seus registros real, simbólico e imaginário.
“Ou seja, a psicanálise é uma análise das experiências mais radicais de conflito que vive um sujeito em sua própria divisão. Então apresentar metapsicologicamente um fenômeno passa por compreender como naquele fenômeno estão colocados os processos de divisão de um sujeito.” – conclui Ravanello.
Descrição em termos dinâmicos
O segundo ponto dessa apresentação metapsicológica é seu caráter dinâmico. Isso quer dizer que a relação entre esses sistemas implica movimento, implica relações, implica passagens. Em Freud temos passagens do pré-consciente ao consciente, do consciente ao pré-consciente, do pré-consciente ao inconsciente, do inconsciente ao pré-consciente e esses movimentos não acontecem no aparelho psíquico sem consequências.
Exemplos: ao falar do recalcamento está se falando de uma passagem daquilo que está no sistema pré-consciente/consciente para o inconsciente. Ao falar de formação de sintomas, está se falando em uma dinâmica de um desejo, ou representação, inconsciente que encontra passagem na formação de um elemento substitutivo no sistema consciente ou pré-consciente. Está se falando então em processos dinâmicos. Processos estes que envolvem relações de internalidade, externalidade, de fronteiras, de traduções necessárias, pois aquele modo de funcionamento do inconsciente é diferente do modo de funcionamento do pré-consciente e do consciente.
Assim sendo, na passagem de um registro a outro, de um sistema a outro, existem fenômenos que são, obrigatoriamente, da ordem da reprodução, da reinscrição, da reestruturação dinâmica deles.
Descrição em termos econômicos
Há o ponto de vista econômico.
“E aqui há uma espécie de questão própria ao pensamento freudiano, que Freud vai dizer que a economia é mais importante que a dinâmica, a dinâmica é mais importante que a topografia. A economia é o que guia o ouvido do psicanalista. ” – pontua Ravanello.
O que é a economia psíquica? São as nossas paixões, nossos afetos, são as intensidades dos fenômenos psíquicos em sua relação com o outro e consigo mesmo, na sua relação com o seu corpo. Quando se fala em processos econômicos psíquicos se fala em conceitos como o de pulsão, se fala em quantidade de afeto, afeto, emoções, intensidades, excitações, estímulos, ou seja, toda uma espécie de cartografia, em Freud, de como vivemos as experiências daquilo que nos afeta, daquilo que nos causa, do ponto de vista de nossas intensidades.
“Quem quiser fazer um estudo mais prolongado, mais a fundo, de como Freud e Lacan vão abordar esses fenômenos da ordem do afetivo, eu recomendo um percurso que eu tive a honra e o prazer de compartilhar com vocês junto ao Instituto ESPE, chamado A Escuta dos Afetos. Já está disponível também como percurso no ESPECast.” – Tiago Ravanello
Esses processos econômicos vão ter uma importância fundamental no pensamento freudiano e, sobretudo, na clínica psicanalítica, porque essa escuta do analista – estranha, pouco familiar ao modelo comum dos laços sociais, que parece não responder muito bem às etiquetas e às formas comuns de relacionamento – vai priorizar, justamente, a intensidade, em detrimento dos conteúdos. Essa escuta vai priorizar quantidades de afetos em relação a representações. Vai priorizar circuitos afetivos e modos de repetição em detrimento de ideias.
Na prática isso quer dizer que um analisando que produz a sua narrativa direcionada a um analista – ou seja, que fala em uma sessão de análise – visando encontrar nesse analista um destinatário para essa narrativa vai então encadear, vai associar uma série de representações. Nessas associações cabe então ao ouvido do analista buscar como as intensidades dessas representações estão se movimentando, ou seja, buscar o que é da ordem de um investimento, da ordem de um investimento que está sendo deslocando, o que é que está ali sendo barrado do ponto de vista do fluxo dessas intensidades.
“Assim, às vezes você tem um analisando - ou analisanda - que fala coisas muito importantes, por exemplo, de uma forma desafetada, mas que vai implicar uma experiência de intensidade em algo que parece uma sutileza, que parece desimportante em relação ao resto. O analista larga de lado as ideias extremamente importantes e acompanha o percurso, o circuito formado por essa representação que foi investida. Isso não é o comum das conversas, isso não é o comum das formas de escutar. Isso funda uma escuta, propriamente psicanalítica, que vai priorizar a economia em detrimento de dinâmica e em detrimento de topografia.” – exemplifica Ravanello.
Quer saber mais sobre os textos metapsicológicos de Freud? Acesse então a plataforma ESPECast e confira este e os outros episódios do percurso com o Professor Tiago Ravanello, além de outros percursos, com grandes nomes da psicanálise, em mais 300 horas de conteúdo.
Até nosso próximo texto
O que achou dessa matéria? Gostaria de continuar a estudar com o ESPEcast? Conheça nossa plataforma online dedicada à transmissão da psicanálise. São mais de 300 horas de cursos e conteúdos ligados ao campo da psicanálise, produzidos por pesquisadores(as) e analistas que são referência no Brasil e no mundo.
Transcrição e adaptação:
Gustavo Espeschit é psicanalista, professor e escritor. Pós-graduado em Fundamentos da Psicanálise: Teoria e Clínica pelo Instituto ESPE/UniFil e Pós-graduado em Clínica Psicanalítica Lacaniana pela mesma instituição. Formado em Letras Inglês/Português com pós-graduação em Filosofia e Metodologia do Ensino de Línguas.
Autoras do episódio:
Tiago Ravanello: Psicanalista, doutor e mestre em Psicologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro e Pós-Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Parte de seu doutorado sido realizada como bolsista do Centre de Sciences du Langage da Université de Paris. Éprofessor Associado da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - Faculdade de Ciências Humanas, atuando no curso de Graduação e Pós-Graduação em Psicologia - Mestrado.
Comments