Nos porões da história: o legado de Sabina Spielrein
- ESPEcast
- há 6 dias
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Há histórias que parecem ter sido escritas para permanecer em silêncio. A de Sabina Spielrein (1885–1942) se assemelha a uma dessas.
Nome presente nas revistas de psicologia mais importantes do início do século XX, autora de textos que anteciparam conceitos decisivos para a psicanálise, ela acabou reduzida a uma nota de rodapé.
O que se transmitiu sobre Spielrein foi, em grande parte, sua condição de paciente de Carl Gustav Jung e seu romance com ele. O “resto” — sua originalidade teórica, sua ousadia clínica, sua contribuição pioneira — foi sendo soterrado.
Esse apagamento não é acaso. Ele denuncia o modo como a história da psicanálise foi escrita e, inclusive hoje, narrada: privilegiando os “mestres” e relegando as mulheres a papéis secundários.
Como lembra a professora Renata Cromberg, “os textos da Sabina não têm só um valor histórico, eles têm um valor contemporâneo”.
Resgatar sua obra está para além de um exercício de memória: é também questionar como o silenciamento de vozes femininas se reproduz dentro do próprio campo psicanalítico.
Sabina Spielrein: da paciente à autora
Sabina nasceu em Rostov, na Rússia, e se formou em medicina em Zurique, na Suíça. Ainda muito jovem, internou-se na clínica Burghölzli, onde foi analisada por Carl Gustav Jung. O que poderia ter sido apenas mais uma história de paciente foi, no entanto, o início de um percurso singular.
Speilrein transformou sua experiência clínica em produção teórica e, pouco tempo depois, já escrevia artigos originais, dialogando com Freud, Jung e com os debates médicos da época.
Mas foi justamente sua relação com Jung que marcou de forma ambígua sua trajetória. Se, por um lado, a aproximou da psicanálise, por outro a aprisionou em uma narrativa que reduziu sua importância ao romance e à tragédia pessoal.
Durante décadas, seu nome circulou mais como personagem secundária na biografia dos homens que a cercaram do que como a autora e pensadora original que de fato foi.
A originalidade de uma teoria esquecida
Entre 1910 e 1931, Sabina Spielrein produziu artigos que revelam um pensamento inovador e precoce. Em 1911, refletiu de forma pioneira sobre o masoquismo.
Em 1912, publicou A destruição como origem do devir, no qual desenvolveu o conceito de “pulsão sexual de morte”. Oito anos mais tarde, Freud retomaria essa ideia em Além do princípio do prazer, limitando-se a mencioná-la em uma nota de rodapé.
Sabina não se restringiu à metapsicologia. Integrava neurologia, linguística, estudos sobre esquizofrenia, sonhos e fenômenos hipnagógicos. Seu olhar era interdisciplinar e ousado, articulando campos que só décadas mais tarde voltariam a se encontrar.
Uma frase-síntese, proposta por Renata Cromberg, ajuda a condensar essa originalidade: “No início do verbo era ação.” Com ela, podemos enxergar uma Sabina que subverte a ordem entre linguagem e ato, antecipando debates que Lacan só desenvolveria na segunda metade do século XX.
Como lembra Cromberg, essa concepção abre caminho para pensar a articulação entre linguagem, desejo e pulsão de maneira radical.
Originalidade e apagamento
O destino de Sabina Spielrein foi ser lembrada menos pela força de suas ideias e mais por sua condição de exceção: a paciente que se apaixonou por Jung, a mulher assassinada pelos nazistas na Rússia ocupada.
Apesar de sua obra ter sido publicada em periódicos respeitados, acabou sendo gradualmente esquecida.
Como observa Renata Cromberg: “Sabina não estava escondida, os artigos dela tinham sido publicados nas principais revistas de psicologia da década de 1910–1920, mas ela foi esquecida.”
Esse esquecimento se explica, em parte, pela violência histórica da guerra, mas revela também o modo como a história da psicanálise foi construída: privilegiando versões oficiais, escolas e nomes consagrados, enquanto outras vozes, como a de Sabina, foram relegadas às margens.
O reaparecimento da valise
O silêncio em torno de Sabina Spielrein se prolongou até quase o início dos anos 1980. Como lembra a professora Renata Cromberg, Sabina “emergiu dos porões” quando, durante uma mudança no Instituto Jean-Jacques Rousseau, em Genebra, foi encontrada uma valise esquecida no porão do Palais Wilson.
Dentro dela estavam diários, manuscritos e cartas trocadas com Freud e Jung. O neurologista Georges de Morsier, sobrinho de Édouard Claparède (1873–1940), fundador do Instituto, entregou o material ao argentino Carlo Trombetta, que por sua vez o encaminhou ao psicanalista italiano Aldo Carotenuto.
Em 1980, Carotenuto publicou esses documentos sob o título Diário de uma secreta simetria: Sabina Spielrein entre Jung e Freud, dando início à redescoberta de sua obra.
Nas palavras de Cromberg: “Eu chamei isso de um achado arqueológico, mas não é uma arqueologia simples (…) é como que alguma coisa que emerge, que era desconhecida da história da psicanálise, e pode recolocar as camadas dessa história de uma maneira diferente.”
Essa história apresenta uma espécie de reorganização da estante, um deslocamento de prateleiras, mudando o lugar das coisas. Ao emergir do porão, Spielrein trouxe seus escritos e uma presença capaz de abalar a narrativa oficial da psicanálise.
Conclusão: Por que essa história importa hoje
O caso de Sabina Spielrein se assemelha a um sintoma. Ele revela um padrão recorrente: a marginalização das vozes femininas na construção do saber psicanalítico.
A própria psicanálise, criada para dar lugar ao inconsciente, acabou por reproduzir — de modo inconsciente — os preconceitos de sua época: machismo, racismo, misoginia.
Ler Sabina hoje é aceitar o convite para pensar como seguimos repetindo apagamentos. É reconhecer que houve uma teoria original sobre desejo, linguagem, pulsão e feminino que foi silenciada.
E é, sobretudo, refletir sobre como continuamos a escolher quais vozes permanecem e quais desaparecem.
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Transcrição e adaptação:
Renata Suhett é jornalista, especialista em marketing, escrita e mídias sociais. Formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário de Barra Mansa - RJ.
Referências Bibliográficas:
SPIELREIN, S. A destruição como origem do devir. 1912.
CAROTENUTO, A. Diário de uma secreta simetria: Sabina Spielrein entre Jung e Freud. Roma: Armando Editore, 1980.
CROMBERG, Renata Udler. Sabina Spielrein: uma pioneira da psicanálise – obras completas / volume 1. São Paulo: Edgard Blücher Ltda., 2021.
CROMBERG, Renata Udler. Sabina Spielrein: uma pioneira da psicanálise – obras completas / volume 2. São Paulo: Edgard Blücher Ltda., 2021.
CROMBERG, R. U. Sabina Spielrein – Parte 3. Entrevista. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wZzzRard2y4. Acesso em: 24 ago. 2025.
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