O fio da Angústia: O Afeto que não mente
- ESPEcast

- 26 de set.
- 7 min de leitura
A angústia é, entre os afetos, a mais enigmática, pois interrompe a fala do sujeito, impedindo-o de expressar o que sente sobre si mesmo. Ao mesmo tempo, é um dos elementos mais reais em um percurso de análise, sinalizando o surgimento de uma verdade que ainda está encoberta.
Para compreender as sutilezas da angústia, do pânico e do desamparo, afetos primordiais que moldam a experiência subjetiva, recorreremos às reflexões do psicanalista e psiquiatra Mário Eduardo Costa Pereira em seu novo percurso na plataforma do ESPECast.
Este texto propõe explorar as diferentes formas de angústia e suas relações com a antecipação do desejo, do perigo e do desamparo, destacando como tais experiências contribuem para a constituição do sujeito.
A análise de casos clínicos, como o de Emma, aliada a uma articulação teórica, permitirá perceber a angústia como um fenômeno psíquico, e também como um indicativo da realidade interna e das relações do sujeito com o outro.
Convidamos você a percorrer conosco este fio de análise, que busca revelar os caminhos pelos quais a angústia se manifesta e se inscreve na vida psíquica.
Boa leitura!
Os Casos Emma e Pequeno Hans
Para explorar o tema da angústia, Mário Eduardo recorre a casos clássicos da psicanálise, como o relatado por Freud no Projeto para uma Psicologia Científica (1895, Entwurf): o caso Emma.
Até os 12 anos, Emma vivia sem grandes conflitos. No entanto, ao entrar em uma loja com dois vendedores, foi tomada por um susto súbito (schreck affect), desencadeando uma crise de pânico e sintomas fóbicos — o que Freud chamou de “cena 1”.
O medo de Emma não se restringia à loja em si, mas à situação de se encontrar diante dela, levando-a a evitar sair de casa para escapar do quadro fóbico. Freud caracteriza esse quadro como heterogêneo, sendo o elemento central o susto inesperado ou terror súbito.
De maneira análoga, o pequeno Hans apresentava medo diante de um cavalo (angst vor dem Pferd). A experiência de Hans não se refere ao medo do objeto em si, mas à angústia provocada pela situação. Ao se encontrar diante do cavalo, Hans era tomado por um afeto perturbador, mostrando que a fobia é, antes de tudo, uma reação ao contexto que desperta a angústia.
Emma e Hans compartilham, assim, uma experiência fundamental: diante do objeto ou da situação, o sujeito é tomado por um afeto angustiante que marca suas vivências e orienta seus comportamentos subsequentes. Com esses exemplos claros, podemos avançar para a compreensão teórica das diferentes formas de angústia.
Conceitos de angústia em Freud
Para Freud, a angústia não é uma experiência unitária. Como observa Mário Eduardo, “para Freud, apesar dele falar da angústia, ele vai dizer que a angústia não é uma unidade, algo que tem uma única forma de apresentação, ele vai dizer que tem um grande campo de fenômenos próximos”.
Dentro desse campo do angustiante, podemos identificar diferentes manifestações, como grauen, furcht, schreck e angst (angústia e medo). Essas formas se diferenciam pelo objeto ou situação que as provoca, e também pela maneira como se apresentam na experiência do sujeito.
No caso de Emma, a fobia não corresponde ao medo da loja em si, mas ao temor que surge ao se encontrar diante dela. Essa distinção evidencia que a angústia se manifesta de formas distintas de outras experiências afetivas, tais como:
Das Unheimliche – “O Infamiliar”: o sujeito sente angústia ao encontrar algo estranho em um contexto familiar, percebendo um caráter sinistro em elementos antes comuns.
Grauen – “Horror”: surge quando o sujeito se confronta com algo relacionado à castração no outro. Freud utiliza esse termo, por exemplo, ao descrever a reação do menino ao descobrir que a mãe não possui pênis.
Angústia de situações crônicas: caracteriza-se pela antecipação de que algo ruim vai acontecer. Trata-se de um suspense indefinido, uma expectativa de perigo que paralisa sem se apresentar de forma concreta.
Esses exemplos mostram que o afeto angustiante pode se manifestar de modos variados, dependendo do contexto e das experiências anteriores do sujeito. Reconhecer essas nuances permite compreender a angústia como um fenômeno complexo, que vai além do medo simples e da ansiedade passageira.
Aspectos linguísticos: angústia x ansiedade
A compreensão da angústia também se aprofunda quando observamos sua dimensão linguística. Nas línguas latinas, os termos relacionados à ansiedade e à angústia derivam da raiz ang, que remete à ideia de estreitamento.
A partir dessa raiz surgem palavras como anxio, que se refere à ansiedade, ao anseio e ao desejo de antecipação — um movimento de se voltar para o futuro e tentar capturar ou resolver rapidamente aquilo que provoca tensão, como se disséssemos: “eu quero que isso se resolva logo”. Já angor remete ao aperto no peito, ao estreitamento, à sensação de angina.
Como observa Mário Eduardo, “a ideia da angústia nas línguas latinas, e no português em especial, sublinha esse caráter de estreitamento do âmbito vital. O sujeito se sente oprimido, apertado. Quando a gente fala de angústia, a marca principal está do lado do corpo”.
Essa distinção evidencia dois planos de experiência:
A ansiedade tende a se manifestar no plano mental e psíquico, como um arrebatamento, uma paixão ou desejo diante de algo perturbador que não se resolve.
A angústia, por sua vez, está mais ligada à vivência corporal, ao aperto físico que acompanha o estado afetivo.
Assim, podemos perceber que a angústia não se limita a um fenômeno mental, mas se inscreve sobretudo no corpo, reforçando sua dimensão de experiência profunda e real.
Experiência primária do desejo e do desamparo (Freud, Projeto)
Freud explica que a constituição da experiência de desejo começa já na primeira infância, com a vivência de satisfação no seio materno.
A criança, tomada pela fome e pelo mal-estar crescente, encontra-se em uma condição de desamparo (hilflos, hilflos zustand), incapaz de ajudar a si mesma e à mercê de uma invasão intensa de desprazer, que ameaça sua própria sobrevivência. Nesse momento, surge o seio da mãe como consolo: aplaca a fome, o desamparo e oferece acolhimento, carinho e organização.
Essa experiência inicial deixa marcas profundas na memória do sujeito em construção. Em situações futuras de fome ou de invasão de sensações de desprazer, a memória conecta-se à imagem daquele seio providencial, gerando anseio de reencontrá-lo.
O sujeito passa a acreditar que de algum lugar virá um objeto capaz de aplacar sua falta, iniciando a construção de uma orientação desiderativa, na busca contínua por esse objeto.
Contudo, a experiência nunca se repete de forma idêntica: nem o seio, nem a satisfação são os mesmos. Como observa Mario Eduardo, “a satisfação do desejo deixa algo de satisfeito e de insatisfeito também”. O movimento básico do desejo envolve, portanto, uma tensão entre satisfação e insatisfação, entre expectativa e frustração.
Paralelamente, experiências de dor e desprazer (schmerz) também deixam marcas de memória. Sempre que algo se assemelha a essas experiências negativas, o sujeito tende a evitar a situação.
Assim, dois sistemas funcionam simultaneamente: um busca ativamente indícios do objeto capaz de satisfazer o desejo, enquanto o outro antecipa sinais de perigo ou desprazer, preparando o sujeito para o risco.
Essa dinâmica fundamental explica a estreita relação entre desejo, desamparo e a emergência da angústia na teoria freudiana, mostrando como o afeto angustiante se inscreve desde as primeiras experiências de vida.
Sistema do desejo e do perigo
Para Freud, o sujeito entra no mundo de maneira ativa, operando simultaneamente em dois sistemas complementares. O sistema de antecipação do desejo mantém o sujeito atento a qualquer indício de um objeto capaz de aplacar sua falta ou completar o que perdeu.
Em simultâneo, o sistema de antecipação do perigo busca sinais de situações que possam causar dano. Esses sistemas orientam a interação do sujeito tanto com o mundo externo quanto com suas experiências internas.
No caso de Emma, essa dinâmica fica evidente. Ela foi tomada por um afeto angustiante que anunciava a emergência de um perigo já conhecido, mas para o qual não estava preparada. Como observa Mário Eduardo, “a angústia é a antecipação daquilo que é perigoso, de modo a preparar o sujeito tanto para o desejo quanto para aquilo que teme ou busca”.
Segundo Mário Eduardo, o trauma não se define pela intensidade da excitação que provoca desprazer, mas pela surpresa diante de uma excitação intensa e inesperada. Mesmo diante de grande sofrimento, um sujeito preparado para a situação pode evitar o efeito traumático. Emma exemplifica isso: diante do perigo, sem qualquer antecipação, ela é tomada de surpresa e não consegue se proteger.
Os dois sistemas — de desejo e de perigo — compartilham a mesma estrutura: ambos se voltam para o futuro a partir das marcas do passado, embora o que encontram nunca coincida exatamente com o que buscavam.
Esses sistemas associativos constituem o sujeito de maneira singular, criando uma rede única de experiências e expectativas que é exclusiva para cada indivíduo.
Conclusão
A análise dos sistemas de desejo e perigo nos leva a compreender a angústia como uma reação diante de situações ameaçadoras e um indício de algo profundamente real presente no psiquismo do sujeito. Mesmo que ele ainda não consiga representar plenamente essa realidade, a angústia atua como um filtro que sinaliza o que é essencial.
No caso de Emma, embora naquele momento não houvesse uma representação clara do perigo, a angústia constituía, em seu sistema psíquico, o que há de mais real.
Em Lacan, a angústia é entendida como o afeto que não mente, funcionando na clínica como uma bússola — o fio condutor de uma análise. Mesmo na ausência de significação inicial, os afetos já estão presentes e produzem efeitos duradouros na vida psíquica.
Compreender a angústia como afeto e verdade permite que a psicanálise a reconheça como um fio condutor do percurso analítico. Ela revela dimensões fundamentais do desejo, da expectativa e da relação com o outro, mostrando que a experiência angustiante é também um caminho para a construção da singularidade de cada sujeito.
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Transcrição e adaptação:
Renata Suhett é jornalista, especialista em marketing, escrita e mídias sociais. Formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário de Barra Mansa - RJ.



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