“Digo que é preciso supor tetrádico o que faz o laço borromeano - perversão quer dizer apenas versão em direção ao pai -, em suma, o pai é um sintoma, ou um sinthoma, se quiserem.” (LACAN, 2007 p. 21) O que é um pai na psicanálise?
Essa é uma pergunta que, de alguma forma, marca uma certa leitura da interpretação e da clínica psicanalítica. O que é um pai, ao final de contas? Essa é a pergunta analisada por Daniel Omar Perez neste episódio #68 do ESPECast, disponível no YouTube e no Spotify. Vamos a ele.
Então, o que é um pai? Há diferentes formas de trabalhar a questão do pai em psicanálise. Poderíamos recortar todo o horizonte, todo o universo da literatura e da clínica psicanalítica entre alguns textos de Freud e de Lacan. Podemos pensar imediatamente no pai biológico, dizendo que, de alguma forma, se trata do pai biológico, mas não é exatamente isso. O pai de Freud aparece em vários textos em relação a vários casos clínicos, de várias formas.
Totem e Tabu
“Há um ponto fundamental que é Totem e Tabu.” – nos aponta Daniel no episódio. - “O ensaio de Totem e Tabu é um texto de Freud, de 1912, onde ele examina quais são as origens da obediência, o porque a gente obedece e, de algum modo, também teme.”
O assunto principal do texto, seu problema, seria crianças que têm fobias. Para então elucidar o caso clínico, Freud vai buscar a origem da lei e fazer questionamentos do tipo: “Onde se origina a lei?” “Por que alguém obedece pela primeira vez?”
Recorrendo a uma série de exames e investigações antropológicas e examinando primeiro o tabu e depois o totem, Freud vai chegar a uma espécie de mito de origem. Ou seja, não conseguindo ter elementos empíricos para mostrar qual seria a origem da lei, ele inventa um mito para tentar dizer o que, de alguma forma, aconteceu. Aparece então a figura do pai, do pai primevo, do pai da horda, do pai que protege e que provê, mas que estabelece uma condição: as crias não poderiam ter relações sexuais com as fêmeas.
O pai totêmico, então, seria aquele pai que tudo pode, ao qual tudo lhe é permitido e que, da mesma maneira, impõe um limite, coloca uma barreira à cria, estabelecendo uma relação então baseada na obediência. Em outras palavras, o pai protege e provê tudo que a cria necessita desde que a mesma obedeça à lei do pai.
Assim sendo, o mito diz que por ódio a um pai castrador, essa horda se reúne e mata o pai. Este ato então geraria um sentimento de culpa que, por sua vez, faria surgir a lei. “A lei não seria outra coisa que o retorno do pai morto. Aquilo que era instituído pela força do poder do pai, agora, de alguma maneira, é colocado em forma simbólica através de uma figura totêmica. Então, aí teríamos uma primeira versão do que poderia ser o pai.” – nos ensina Daniel.
Psicologia das Massas e Análise do Eu.
Existe outro texto de Freud chamado Psicologia das Massas e Análise do Eu. Neste texto, Freud entende que a relação que existe entre um grupo está, de alguma forma, determinada por uma relação libidinal, relação esta vinculada a um substituto do pai. Quer dizer, um grupo se organiza em uma fraternidade, mas vinculado a um líder, a uma função que organizaria este grupo.
Neste texto então Freud entende que o ser humano, ou que os grupos humanos, procuraria substitutos do pai em uma igreja por exemplo, em um exército e também em outros tipos de organizações coletivas. Esta então seria um outro modo de ver o pai.
Moisés e a Religião Monoteísta
Posteriormente Freud dá uma sequência a isso em três ensaios chamados Moisés e a Religião Monoteísta. Nestes ensaios Moisés aparece como a figura de um pai que organiza um povo, dando, de alguma forma, sustentação a uma identificação coletiva, mas que deveria ser assassinado no final da história. Assim, Freud reinterpreta os textos da Torá, assim como também a própria vida de Moisés, para mostrar não apenas a imagem de uma religião de um único Deus, mas também a figura fundamental de Moisés. “Deus-Pai, Moisés, o ordenador, o articulador, o congregador, que, de algum modo, deve ser assassinado para que esse povo possa subsistir.” – conclui Daniel.
O pai como função simbólica
Isso nos permite pensar, já junto com Jacques Lacan, o pai como uma espécie de função simbólica. Pode existir o pai biológico, mas ele não seria suficiente. O pai biológico pode não estar presente e operar como a presença de uma ausência. Exemplificando: podemos ter uma família cujo o pai morreu na guerra e essa família, esse grupo, esse bando, passaria a se referir e a atribuir a esse uma função, uma função paterna, fazendo-a operar de modo simbólico.
Assim sendo podemos pensar na existência de um pai simbólico, como também na de um pai imaginário, sendo este aquele que apresenta, por exemplo, um aspecto do líder. Os líderes funcionam como pais imaginários. “Há uma projeção do ideal do eu no outro, que faz com que esse outro ocupe um lugar de ideal – imaginário – que me sustenta nessa relação libidinal.” explica Daniel acrescentando que este pai imaginário se produz a partir de uma idealização.
O pai simbólico, por sua vez, seria aquele que cumpre uma função paterna, podendo ou não estar empiricamente, concretamente, presencialmente no lugar onde é colocado.
Lacan
Lacan introduz com muito cuidado essa função paterna como uma função simbólica, como um modo de ordenar. “Ele fala também de metáfora paterna, função paterna, metáfora paterna, o nome do pai. Lacan articula essas noções para se referir, de algum modo, a um elemento que permite ordenar simbolicamente esse sujeito em uma ordem simbólica e em uma relação de castração.” – diz Daniel no episódio.
Seminário 3
O pai vai aparecer em vários textos de Lacan. No episódio Daniel nos direciona em especial para o Seminário 3 – As Psicoses, onde Lacan define as estruturas da psicanálise, a dizer, neurose, psicose e perversão.
Cada uma dessas estruturas, segundo Lacan, estaria definida a partir de uma relação como o modo que o sujeito tem de negar a castração, ou seja, de negar essa operação de separação. Localizamos então a função paterna. A função paterna seria a de separar o bebê da mãe, fazendo com que esse acontecimento inscreva este bebê em uma ordem simbólica e de castração. É importante salientar sempre que se trata de uma função, não exatamente de um sujeito. O que exerce essa função pode ser, eventualmente, um sujeito, mas não necessariamente.
A operação da castração aparece com a linguagem. A linguagem interdita, castra. Quando a linguagem nomeia, ela nomeia e separa. Ao separar ela faz entrar, ou seja, ela inscreve esse sujeito numa ordem simbólica.
Sendo assim nós temos:
o pai biológico
o pai imaginário 🡪 projeção do ideal do eu
o pai simbólico 🡪 o que faz função paterna, aparecendo no que chamamos também de metáfora paterna
o nome do pai 🡪 o ponto de estofo, o lugar do outro em relação ao qual eu posso estabelecer as funções.
Seminário 6
No Seminário 6 – O desejo e sua interpretação, Lacan vai citar a peça de Willian Shakespeare Hamlet. Nesta obra, Hamlet, o príncipe da Dinamarca, se encontra com um espírito que lhe diz ser o espírito do seu pai. Este espírito conta para Hamlet ter sido assassinado por seu irmão para poder, posteriormente, se casar com sua mulher. Ou seja, o tio de Hamlet teria assassinado o seu pai para poder se casar com sua mãe. Em assim sendo, além de contar o que lhe aconteceu enquanto dormia no jardim do palácio, o fantasma do pai de Hamlet também lhe diz o que fazer, ou seja, lhe imbui uma tarefa: vingar a sua morte. Estabelece-se aqui, portanto, uma espécie de mandato.
“A interpretação de Lacan é bastante precisa.” – nos aponta Daniel observando que aqui já não se trata mais do pai totêmico, já não se trata mais de um substituto do pai, já não se trata mais de um Moisés que vem em nome de Deus. Trata-se agora de um pai, que vem em forma de fantasma. Hamlet então nos faz pensar o pai dentro de uma estrutura fantasmática na qual ele próprio é o fantasma. É interessante ler, tanto a obra como a interpretação de Lacan no Seminário 6 para se aprofundar no assunto.
Os Nomes do Pai
Passamos agora a analisar um outro texto de Lacan, chamado Os Nomes do Pai.
Durante uma boa parte de seu ensino, Lacan falou do nome do pai, da função paterna e da metáfora paterna. Falou que o pai corta, ordena e inscreve em uma ordem simbólica e de castração. Então, em 1963, Lacan vai falar dos nomes do pai. Já não vai ser o nome do pai, e sim os nomes do pai, as versões do pai.
Em 1963, depois de 10 anos promovendo seu ensino, Lacan dá uma torção no mesmo e reformula um elemento que é essencial para a clínica e para a teoria psicanalítica lacaniana, a dizer: passamos de um pai para Os Nomes do Pai. Passamos, de acordo com ele próprio, de uma lógica dialética para uma lógica matemática para podermos dar conta das funções dos nomes do pai.
Em função de sua expulsão da IPA, sabemos que essa lição foi interrompida e assim vieram os outros Seminários onde Lacan retomaria os conceitos fundamentais da psicanálise e os problemas cruciais da psicanálise para na década de 70 voltar a fazer aparecer um outro tipo de lógica e também, segundo aponta o professor Daniel, um outro tipo de pai.
Seminário 23
No Seminário 23 – O Sinthoma o pai já não aparece mais como o articulador, o ordenador. Lacan vai entender que a articulação real, simbólica e imaginária – e aqui poderíamos pensar também o pai nestes termos: o pai real, o pai simbólico e o pai imaginário - se organizaria de algum modo a partir ou em relação com o enodamento com um quarto nome: o sintoma.
“Agora, na introdução da teoria dos nós, no ano de 1975, 1976, Lacan vai dizer que não teria propriamente o pai, senão que teria versões do pai e que o sintoma seriam as versões do pai.” – diz Daniel, esclarecendo que o que ordenava e organizava a estrutura na época do Seminário 3 era a metáfora e a função paterna. A partir então de 1975 já não haveria um ordenamento, uma estruturação e sim um enodamento, quer dizer, uma outra forma de articular o real, simbólico e imaginário, que não seria baseada mais no pai, e sim no sintoma.
Na primeira aula do Seminário 23, Lacan nos diz:
“Digo que é preciso supor tetrádico o que faz o laço borromeano - perversão quer dizer apenas versão em direção ao pai -, em suma, o pai é um sintoma, ou um sinthoma, se quiserem.” (LACAN, 2007 p. 21)
“O pai é um sintoma... o pai é um sintoma...” – ecoa Daniel no episódio dizendo que este ponto o faz lembrar o pai de Hamlet. – “O pai aparece como um sintoma, que de algum modo permite, em tanto sintoma e não em tanto pai, fazer com que o real, o simbólico e o imaginário consigam se articular para produzir um lugar desde onde um sujeito possa enunciar alguma coisa.” – complementa.
Em outro ponto desta mesma lição Lacan vai nos dizer: “O complexo de Édipo é, como tal, um sintoma. É na medida em que o Nome-do-Pai é também o Pai do Nome, que tudo se sustenta, o que não torna o sintoma menos necessário.” (LACAN, 2007, p. 23)
CONCLUSÃo
Para concluir, Daniel nos diz que em psicanálise, seja freudiana ou lacaniana, podemos encontrar um percurso que nos faz refletir sobre o que é um pai e qual é a sua função, qual é o seu lugar, assim como nos questionar como é que o pai vem a se transformar em sintoma e como que isso vai mudando, não só o dispositivo analítico, como também a clínica psicanalítica.
Para maiores esclarecimentos, assista ao episódio nas plataformas.
Até nosso próximo artigo!
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Transcrição e adaptação:
Gustavo Espeschit é psicanalista, professor e escritor. Pós-graduado em Fundamentos da Psicanálise: Teoria e Clínica pelo Instituto ESPE/UniFil e Pós-graduado em Clínica Psicanalítica Lacaniana pela mesma instituição. Formado em Letras Inglês/Português com pós-graduação em Filosofia e Metodologia do Ensino de Línguas.
Autor do episódio: Daniel é psicanalista, pesquisador e professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutor e Mestre em Filosofia pela Unicamp, com pós-doutorado na Michigan State University nos EUA e em Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn na Alemanha. Autor de diversos livros de Filosofia e Psicanálise. Obteve o título de licenciado em filosofia em 1992 na Universidade Nacional de Rosario (Argentina). Publicou artigos científicos em revistas nacionais e internacionais, livros e capítulos de livros sobre filosofia e psicanálise.
Referência: Lacan, Jacques. O Seminário, livro 23: O sinthoma – 1ª edição – Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
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