Oratória como Efeito de Linguagem: Sujeito, Laço Social e Enunciação
- ESPEcast

- 11 de jul.
- 8 min de leitura
Somos seres falantes. Estabelecemos nossos vínculos e afetos por meio das palavras - inclusive do silêncio, quando elas nos faltam. Segundo a teoria lacaniana, somos também falados, pois nascemos mergulhados na linguagem, e é ela que nos estrutura enquanto sujeitos.
A questão que se coloca, então, é: como começamos a articular essa linguagem para produzir efeitos de desejo? Neste artigo, vamos explorar o tema da oratória. De onde vem e quem foram os primeiros a estruturar essa técnica de capturar o interesse do outro por meio da palavra.
Em reflexões anteriores, mencionamos que os primeiros sons datam da época das cavernas e que a narrativa acompanha a evolução humana desde as pinturas rupestres. Também trouxemos a distinção proposta por Benveniste (1945): o homem tem linguagem; os animais, comunicação.
“Os modos de utilização que tenha dessa linguagem também vão ser alvo de estudos e preocupações do ser humano ao longo dos tempos”, afirma a professora Ana Josefina Ferrari, doutora em linguística.
Já que a relação entre o ser humano e a linguagem remonta a tempos imemoriais, nos importa perguntar: o que faço com essa linguagem que aprendi ao longo da vida? O que é essa linguagem? Como usá-la e para quê? Para curar, persuadir, evocar a memória?
Esses questionamentos são anteriores às teorizações modernas, mas sustentam e dão condições de possibilidade ao desenvolvimento do que hoje conhecemos como linguística.
Para compreender como a linguagem passou a ser usada como instrumento de convencimento, convocação e desejo, é preciso voltar ao início: às primeiras cenas em que o dizer se organizou como gesto, performance e técnica.
É nesse lugar que começa a história da oratória.
Boa leitura!
A origem da oratória: linguagem como técnica
A oratória, como forma estruturada do uso da linguagem, nasce em um contexto social e político muito particular: as polis da Grécia Antiga.
Cidades muradas, organizadas em torno de uma praça pública — o ágora — onde apenas os homens proprietários tinham direito à palavra e à decisão.
Mulheres, pessoas escravizadas, estrangeiros e crianças estavam excluídos da esfera pública. Nem todos eram cidadãos, e o acesso à linguagem como instrumento de poder era restrito àqueles que possuíam propriedade.
Nesse ambiente, falar era agir; discursar significava influenciar os rumos da cidade. É nesse contexto que surge o trabalho dos sofistas, responsáveis por ensinar aos cidadãos a arte de convencer, persuadir, argumentar.
Trata-se de um momento em que a linguagem deixa de ser apenas meio de comunicação e passa a ser modo de produzir efeitos, em outras palavras, uma técnica de incidência sobre o outro.
“Entende-se que, ao falar, eu não só estou colocando um som atrás do outro, mostrando, assinalando ou relatando. Quando eu estou falando, também estou fazendo coisas. Posso persuadir, convencer. Para que o outro faça o que eu quero ou para que não faça o que ele quer.” (Ana Josefina Ferrari)
A fala, assim, adquire um valor pragmático. Não se trata apenas do que se diz, mas do efeito que isso causa, e essa ideia ecoa diretamente nas formulações psicanalíticas.
Sigmund Freud já reconhecia que as palavras possuem um poder de ação sobre o psiquismo: no processo analítico, o sintoma pode ser deslocado pela fala. Falar transforma.
Jacques Lacan, no Seminário 11 (1964), ao afirmar que “um significante é aquilo que representa um sujeito — para quem? Não para outro sujeito, mas para outro significante”, mostra que o sujeito está à mercê da cadeia significante.
Mais ainda: a fala não apenas transmite algo, ela constitui o sujeito. Assim, podemos dizer que a oratória, em sua origem, é também um modo de organizar o desejo através da linguagem, posicionando o sujeito em relação ao Outro.
A necessidade de aprender a capturar o olhar e a escuta do outro, como ensinavam os sofistas, já revela um dado essencial: o falante não controla o efeito da sua fala, mas pode operar sobre esse efeito com técnica. O que se busca, desde então, é uma forma de dar corpo a esse movimento: antecipar, seduzir, impactar.
“Os sofistas estabelecem uma série de elementos — como faço para começar uma fala? Como faço para que o outro me ouça? Para isso, uso um grito, uma careta, algo que chame a atenção.” (Ana Josefina Ferrari)
Essa relação entre linguagem e técnica de convencimento está no coração da oratória, mas também nos atravessa como sujeitos. Podemos considerar que todo ato de fala é um ato de desejo: desejo de ser ouvido, reconhecido, acolhido ou, até mesmo, obedecido.
A oratória nasce, portanto, como articulação entre fala e desejo, entre palavra e poder.
Elementos da oratória: capturar, persuadir, vincular
O interesse dos sofistas não estava apenas no conteúdo de uma fala, mas sobretudo em como ela poderia capturar a atenção do outro e produzir um efeito desejado.
A oratória nasce como um trabalho técnico e subjetivo de construção da fala, onde o corpo, o ritmo e a intenção do sujeito estão implicados.
Era preciso estabelecer presença: interromper o ruído e criar escuta. Mais do que dizer algo, tratava-se de fazer escutar.
Essa dimensão da linguagem aponta para a ideia de que falar é fazer. Como já indicado por Austin (1962) com os atos de fala, o dizer nunca é neutro, ele age sobre o sujeito e sobre o outro.
O segundo desafio da oratória era criar vínculo com quem escuta. O convencimento não se dá apenas por argumentos lógicos, mas também pela via afetiva.
Surgem, então, estratégias discursivas de aproximação: narrativas simples, ditos populares, relatos do cotidiano; formas de se mostrar próximo, semelhante ao outro, abrindo espaço para identificação.
“Se reconhece que, quando o outro se sente próximo de mim, é mais fácil esse poder de persuasão. Narrativas que são simples e fazem com que o outro encontre nesse dizer um ‘puxa, também acontece comigo’.”(Ana Josefina Ferrari)
Esses elementos revelam que a oratória articula três movimentos fundamentais: capturar a escuta, vincular-se ao outro e produzir um efeito, seja ele de convencimento, como no plano político, ou de transformação, como na clínica psicanalítica.
Na perspectiva da psicanálise, essas operações discursivas revelam algo essencial sobre o sujeito: todo ato de fala carrega um desejo.
Não um desejo evidente ou consciente, mas aquele que estrutura o sujeito: o desejo de ser ouvido, de existir no campo do Outro. Falar, nesse sentido, é sempre um gesto de inscrição, uma tentativa de se colocar no discurso do Outro.
A oratória não é apenas uma técnica de convencimento, mas um campo em que se cruzam linguagem, subjetividade e desejo.
O percurso histórico que vai das praças da Grécia Antiga à clínica contemporânea revela que falar é sempre mais do que comunicar: é também se inscrever, desejar, transformar.
Palavra, corpo e ritmo: a oratória entre tradição e escuta
Se bem observarmos, veremos que a oratória nunca se sustentou apenas na palavra dita. Desde suas origens ela envolve corpo, ritmo, respiração e escuta. A palavra, por si só, não convence; é o modo como ela se encarna no corpo e na entonação que a torna viva.
Quem ilustra isso muito bem são os mestres griôs, figuras ancestrais e fundamentais na tradição de transmitir o saber ancestral e cultural de um povo. Nas tradições da África Ocidental, os griôs são os guardiões da memória coletiva.
Contadores de histórias, poetas, músicos e educadores, eles transmitem saberes através da oralidade, da performance e do ritmo. Cada narrativa que entoam é também um gesto político e comunitário, como um modo de manter viva a história de um povo, de ensinar, emocionar e transformar.
Com os griôs aprendemos que falar é mais do que informar: é vincular. Vincular-se ao outro por meio da escuta e da memória. Como os sofistas da Grécia, os griôs compreendiam que o corpo fala tanto quanto a voz, e que, para haver transmissão, é preciso produzir presença.
Essa concepção ecoa também na clínica psicanalítica, onde o discurso é escutado para além do conteúdo manifesto: tom, pausas, hesitações e silêncios são partes essenciais do que é dito. A linguagem é sempre atravessada pelo desejo, e o sujeito se revela não apenas no que fala, mas em como fala.
Assim, tradição e escuta se entrelaçam. A oratória, seja nas praças da Grécia ou nas aldeias africanas, seja na sala de análise ou no discurso público é sempre um ato que coloca em jogo o sujeito, o corpo e o laço com o outro.
CoNCLUSÃO
Voltamos, então, às perguntas que abriram este artigo: o que é essa linguagem que aprendemos ao longo da vida? Como usá-la? E para quê? Vimos que não há uma única resposta, mas que a oratória nos oferece um campo privilegiado para pensar essas questões.
Ao longo do tempo, diferentes culturas elaboraram técnicas, gestos e formas de tornar a fala eficaz.
Desde os sofistas nas praças da Grécia até os mestres griôs da África Ocidental, passando pelos campos da filosofia da linguagem e da psicanálise, a oratória se mostra não apenas como um instrumento de persuasão, mas como um efeito de linguagem que implica o sujeito, o corpo e o laço social.
Falar é sempre mais do que transmitir uma informação. É colocar em jogo um desejo, uma posição subjetiva, uma tentativa de se inscrever no campo do Outro. Escutar, por sua vez, é sustentar esse laço, reconhecendo que todo enunciado carrega mais do que diz.
Assim, podemos dizer que a oratória não responde apenas ao “como falar bem”, mas ao “como fazer laço”. Um efeito? Sim. E também um gesto ético.
Nota: Este artigo foi escrito com base no percurso Introdução aos Estudos da Linguagem, ministrado pela professora Ana Ferrari. Aqui, exploramos os conceitos do módulo intitulado Oratória.
O percurso segue adiante e o convite está feito: aprofunde-se nesses estudos que atravessam a oratória, a retórica, a filologia, a gramática, a linguística como ciência e o signo linguístico. Tudo isso é conduzido com profundidade e sensibilidade pela professora Ana.
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REFERÊNCIAS:
AUSTIN, John Langshaw.Como fazer coisas com palavras. Tradução de D. C. M. Bressan. São Paulo: Herder, 1970. (Obra original: How to Do Things with Words, 1962)
BENVENISTE, Émile.Problemas de Linguística Geral I. Tradução de Maria da Glória Novak e Luiz J. Calvacanti Silva. Campinas: Pontes, 1989.
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Marcelo Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
Transcrição e adaptação:
Renata Suhett é jornalista, especialista em marketing, escrita e mídias sociais. Formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário de Barra Mansa - RJ.
Autor do episódio:
Daniel é psicanalista, pesquisador e professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutor e Mestre em Filosofia pela Unicamp, com pós-doutorado na Michigan State University nos EUA e em Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn na Alemanha. Autor de diversos livros de Filosofia e Psicanálise. Obteve o título de licenciado em filosofia em 1992 na Universidade Nacional de Rosario (Argentina). Publicou artigos científicos em revistas nacionais e internacionais, livros e capítulos de livros sobre filosofia e psicanálise.


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