“ O diagnóstico em medicina tem uma função. O diagnóstico em psiquiatria tem uma função, o diagnóstico em psicanálise é uma questão a ser muito mais discutida.”
Uma das perguntas mais recorrentes que aparecem no campo da psicanálise é: a psicanálise diagnostica ou não? Aquele que ocupa o lugar de psicanalista fala para seu analisante qual é o seu diagnóstico?
Neste episódio #131, que você pode acompanhar pelo canal do YouTube e no Spotify, o professor Daniel Omar Perez tenta dar conta, parcialmente, deste tema.
Vamos a ele.
No início da psicanálise, com Freud, havia uma ideia de que existiam neuroses narcísicas e neuroses de transferência. O que eram neuroses narcísicas? O que eram neuroses de transferência? “Freud entendia que as neuroses narcísicas eram um pouco o que se chama hoje de psicose, de esquizofrenia, e que a neurose de transferência era o que se podia chamar, na época de neuroses histéricas, neuroses obsessivas.” – explica Daniel.
Nesta divisão, Freud postulava que a psicanálise era um método de tratamento de neuroses de transferência, porque a transferência era o ponto fundamental, a base, pois sem transferência não havia psicanálise. Portanto, a psicanálise, segundo Freud, nessas primeiras épocas, era um método para trabalhar histerias. Assim sendo, podemos dizer que, de alguma forma, Freud estava propondo um diagnóstico: o diagnóstico da neurose histérica e, mais adiante, o da neurose obsessiva.
Os casos de Freud
“E é aí que aparece o caso Dora, por exemplo.” – salienta Daniel, chamando também atenção para os cinco casos de histeria presentes no livro Estudos sobre a Histeria, que Freud escreveu juntamente com Joseph Breuer, nos primórdios da psicanálise, entre 1893 e 1895. Estes cinco casos, de pacientes tanto de Freud como Breuer – a citar: Anna O (Breuer) Emmy von. N.; Miss Lucy R.; Katharina e Elizabeth von R. (Freud) – foram tratados, - e curados - através do método desenvolvido por eles.
Freud, mais tarde, ao romper com Breuer, reelabora sua questão sobre o método da psicanálise, já que ele abandona a sugestão e a hipnose após este rompimento, e sobre os diagnósticos em um diálogo profícuo com seu amigo e correspondente, o também médico Wilhelm Flieβ.
“Freud tinha avançado no caminho também de uma tentativa de cura pela via da farmacologia – com os estudos sobre a cocaína – e o que faz é abandonar também o caminho da farmacologia para abrir caminho para o que ele entende que é o método psicanalítico.” – diz professor Daniel, salientando a obra inaugural da psicanálise: “A Interpretação dos Sonhos”. - “A partir dai encontramos um método para tratar neuroses - neuroses histéricas e neuroses obsessivas.”
Dois casos emblemáticos – Dora e o Homem dos Lobos
Segundo Daniel, existem dois casos que são emblemáticos.
Em 1900 aparece o chamado Caso Dora, onde Dora é diagnosticada com uma histeria.
“Aí vemos alguns avanços e alguns retrocessos.” – diz Daniel – “Freud trata essa paciente, que no caso clínico é chamada de Dora, em 1900. O caso é publicado em 1905 e, durante praticamente 15 anos, Freud vai avançando sobre a recapitulação daquele caso de histeria. Portanto, não adiantava muito diagnosticar aquilo como histeria, como se isso fosse resolver algum problema. “– completa o professor dizendo também que o problema se localizava menos no diagnóstico e mais no era feito por Freud na condução do tratamento. De acordo com o próprio, este caso não foi bem sucedido devido a um mau manejo da transferência.
O outro caso é o que é conhecido na literatura como O Homem dos Lobos. Sergei Pankejeff. Freud o chama assim devido a um sonho sobre lobos que ele apresenta. Às vezes o chama de paciente russo, já que Pankejeff era um russo que vivia na Ucrânia.
Sergei apresentava uma série de problemas que vinham sendo tratados com alguns médicos. Para isso ele vai a outros países do leste europeu. Sendo paciente de Kraepelin – nome que podemos considerar como o pai da psiquiatria no século XX. – recebe dele o diagnóstico de psicose maníaco-depressiva e é encaminhado para uma clínica.
“As clínicas que tratavam esse tipo de caso se dedicavam a fazer massagens, banhos, trabalhos com pequenos golpes de eletricidade para, de algum modo, mobilizar o paciente ou tirá-lo de uma situação difícil, passeios, etc.” – nos localiza Daniel.
Sergei então passa um tempo nessa clínica, mas depois decide que esse método não conduz a muita coisa e assim vemos outra vez como temos a presença de um diagnóstico contrastando com um encaminhamento de tratamento que não conduz muito a algum resultado.
Sergei consulta novamente seu médico novamente e este diz que haviam dois outros colegas que poderiam ser consultados. Um era Sigmund Freud, que se localizava mais próximo deles, em Viena. Dessa forma, ele inicia sua análise e esta dura mais ou menos quatro anos, o que, nessa época, era um tempo muito comprido, se levarmos em consideração que o processo analítico se fazia diariamente, com sessões de 50 minutos, de segunda a sexta, e em geral duravam de seis meses a dois anos e meio.
Encontramos aqui, novamente, toda uma espécie de, como coloca Daniel no episódio, de “querela de diagnósticos”. O diagnóstico que Kraepelin havia dado era de uma psicose maníaco-depressiva. Já Freud diagnostica Sergei com uma neurose obsessiva grave.
“Quer dizer, passamos, nesse mesmo caso, de um tipo de diagnóstico e de tratamento para outro tipo de diagnóstico e de tratamento. Já não se tratava mais de banhos, massagens, passeios e choques elétricos. Agora se tratava de um processo de análise através da palavra, pela via da elaboração. Isso é que seria a psicanálise. A psicanálise não é, não pode ser, um ramo da medicina.” – aponta professor Daniel
lembrando que a medicina trabalha questões anatomofisiológicas e, com a psiquiatria mais tarde com transtornos, enquanto que a psicanálise trabalha questões do mal-estar, da dor, do sofrimento de um sujeito através da linguagem e da possibilidade de sua elaboração.
A querela dos diagnósticos
Neste sentido se abre a questão dos diagnósticos. Os diagnósticos, em psicanálise, permitiriam a localização do sofrimento desse paciente para assim promover o encaminhamento deste tratamento, levando a elaboração psíquica dessa situação. Daniel pontua este como sendo o grande debate, até hoje, e o que vai fazer divergir as diferentes correntes da psicanálise.
Freud entendia que esses sofrimentos, dores e mal-estares poderiam se apresentar nas formas de neurose, psicose e perversão. Para ele, essa relação com o desejo poderia se apresentar, portanto, de um modo perverso, de um modo neurótico ou de um modo que entraria nas psicoses, nas esquizofrenias.
Jacques Lacan entende que é preciso dar um passo adiante. Para ele se torna necessário não só trabalhar com os diagnosticados com neuroses, mas também se torna necessário não recuar diante dos quadros de psicose e em seu seminário de 1955-1956 denominado “As Psicoses” vai propor três estruturas clínicas.
Freud não havia falado de estruturas clínicas. Freud havia falado de neurose, psicose e perversão e também da psicopatologia da vida cotidiana. Não da psicopatologia dos doentes, mas de uma psicopatologia da vida cotidiana. Isso diz respeito àqueles sintomas, dores, mal-estares da vida cotidiana que se manifestam na forma de um sofrimento insustentável em alguns, enquanto que para outros fazem algum sentido e os encaminham para algum lugar. “Então é muito importante ver que Freud não abandona a ideia de neurose, psicose e perversão, mas também nos fala de uma psicopatologia da vida cotidiana.” - aponta Daniel.
Ao propor as três estruturas – neurose, psicose e perversão – Lacan vai dizer que elas não são intercambiáveis, ou seja, não podem ser trocadas uma pela outra. Neurose, psicose e perversão seriam, portanto, três formas de negação da castração e seriam três modos de se acolher o sofrimento do paciente e dar um encaminhamento a ela especialmente, por exemplo, com relação a angústia.
“Uma coisa é ter que lidar com angústia na neurose, outra coisa é ter que lidar com a angústia na psicose.” - nos diz Daniel explicando que na primeira ela é a negação da castração e na segunda ela se relaciona a uma forclusão do chamado Nome-do-Pai, da própria castração.
Isso se deu até a década de 70, onde Lacan modificou boa parte de seu dispositivo analítico e passou de um ponto de vista estruturalista para um ponto de vista voltado para a lógica matemática, para a topologia, para os enodamentos. Assim, ele vai apresentar seu dispositivo não mais apresentando três estruturas clínicas, mas dando ênfase ao modo como o sujeito articula aquilo que lhe diz respeito, aquilo que o produz. As questões agora teriam a ver com o registro do Imaginário, do Simbólico, do Real e do Sintoma enquanto tal.
Daniel vai nos explicar então que esse período do ensino lacaniano vai nos oferecer a ideia de que é mais importante trabalhar com aquilo que o paciente traz, no sentido de poder desfazer, destecer, desanodar, reanodar, fazer outros laços que permitam uma outra relação com o sintoma, que permitam uma identificação com o sintoma dentro de uma articulação simbólica, imaginária e real, que permita, ao mesmo tempo, dar conta de um sintoma como gozo e podendo diminuir o sofrimento.
Sobre o sintoma
Importante chamar atenção aqui também para a concepção de sintoma.
No início da clínica psicanalítica existia a ideia de uma eliminação do sintoma e, consequentemente, uma concepção do mesmo. No episódio 89, vimos que Freud entendia o sintoma como uma formação substitutiva de um desejo reprimido e que ninguém sustentava um sintoma sem um lucro secundário.
Lacan toma esse último elemento e postula que um sintoma é uma forma de gozo, ou seja, este sintoma pode ser tanto um gozo sofredor - um gozo mortífero - como também uma forma de gozo parcial – não absoluto – que se articula com o registro do Real, do Simbólico e do Imaginário. Assim, essa ideia de neurose, psicose e perversão teria menos peso.
“Acredito que é possível pensar uma psicanálise não ligada a uma ideia, a um ideal, a reprodução de um ideal da medicina - porque está longe de ser um espelho da medicina, está longe de ser uma abordagem da medicina, está longe de ser um ramo, uma parte, uma divisão da medicina - e pensar mais a psicanálise como uma ciência autônoma, como uma ciência autônoma que desenvolve uma pesquisa em um campo de investigação científica que tenha a ver com o inconsciente, que tenha a ver com o real, que tenha a ver com o sintomático, a partir dessa relação com o Simbólico e com o Imaginário e o Real, e menos com uma ideia de que a psicanálise precisa dar diagnósticos, dar um rótulo, oferecer um significante ao qual alienar-se em um processo analítico.” – Daniel Omar Perez
Um Comentário à Margem
O que acontece com as pessoas que estão em sofrimento quando se encontram com um diagnóstico? Como Daniel nos conta, essa questão foi colocada a ele por um clínico há algum tempo, complementando que o que acontece é que essa operação permite a essas pessoas aliviar essa dor, aceitar-se nesse diagnóstico, melhorando, assim, sua vida.
“Quando você, de algum modo, diante de uma dor, diante de um sofrimento, você encontra um elemento significante que pode dar sentido ao seu sofrimento, isso em psicanálise se chama alienação. Quando nós damos sentido ao sofrimento, nos alienamos a um significante e, de algum modo, essa alienação a esse significante nos permite dar sentido à dor, dar sentido ao sofrimento. Isso pode ser um diagnóstico!” – explica Daniel acrescentando que quando estamos em um estado de angústia diante de um desejo que está a nossa porta, e decidimos não atravessa-la, mas sim colocar ali um significante que dê sentido a esse sofrimento e nos faça evitar o atravessamento dessa angústia. O esporte e religião são colocados como exemplos desse tipo de significante, assim como o diagnóstico.
Complementa ele seu raciocínio:
“Então, do ponto de vista psicanalítico, alguém pode muito bem passar pela experiência de dor, de sofrimento, de angústia e tentar acalmar essa dor, essa ansiedade, consumindo drogas até acabar-se, bebendo até acabar-se, comendo até acabar-se, trabalhando até acabar-se. E, em algum momento, essa pessoa encontra uma religião - por exemplo, evangélica - que lhe permite entender que a vida tem sentido porque ele tem Jesus no coração. E, a partir daí, ele abandona aquelas outras formas substitutivas de tentar evitar a angústia, que eram mortíferas, por esse significante. Mas também pode ser por um significante que tenha a ver com uma militância de esquerda ou de direita ou com uma atividade esportiva ou cultural, ou com um diagnóstico.”
Outro exemplo: o sujeito pode se alienar a um time de futebol, por exemplo, e encontrar um lugar para encaminhar tudo aquilo que tem a ver com seu sofrimento. Então você pode dar sentido ao seu sofrimento e dar sentido à sua alegria cada vez que seu time de futebol ganha ou perde um jogo.
Nesse sentido, esse significante pode ser também um diagnóstico.
CONCLUSÃo
“Quando, de alguma forma, eu sou nomeado pelo Outro, eu me alieno ao significante que o Outro me outorga e isso me permite evitar o atravessamento da angústia e me permite evitar a elaboração.”
Essas saídas, muitas vezes, são saídas terapêuticas. A psicanálise é uma prática que nos conduz a atravessar a angústia – não a evita-la – para depois se elaborar o que resta daquilo que acontece.
“Portanto, o diagnóstico em medicina tem uma função. O diagnóstico em psiquiatria tem uma função, o diagnóstico em psicanálise é uma questão a ser muito mais discutida.” – conclui o professor.
Até nosso próximo texto.
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Transcrição e adaptação:
Gustavo Espeschit é psicanalista, professor e escritor. Pós-graduado em Fundamentos da Psicanálise: Teoria e Clínica pelo Instituto ESPE/UniFil e Pós-graduado em Clínica Psicanalítica Lacaniana pela mesma instituição. Formado em Letras Inglês/Português com pós-graduação em Filosofia e Metodologia do Ensino de Línguas.
Autor do episódio: Daniel é psicanalista, pesquisador e professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutor e Mestre em Filosofia pela Unicamp, com pós-doutorado na Michigan State University nos EUA e em Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn na Alemanha. Autor de diversos livros de Filosofia e Psicanálise. Obteve o título de licenciado em filosofia em 1992 na Universidade Nacional de Rosario (Argentina). Publicou artigos científicos em revistas nacionais e internacionais, livros e capítulos de livros sobre filosofia e psicanálise.
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