O tema do episódio 99 do ESPECast, disponível no YouTube e no Spotify, é a raiva.
Confira abaixo a transcrição do que nos ensina o professor Daniel Omar Perez a respeito do tema.
Boa leitura
O ódio
Durante diferentes momentos de nossas séries de podcasts foram trabalhados diferentes sentimentos, diferentes afetos, tanto em Freud quanto em Lacan, na psicanálise em geral.
Já foi trabalhada a noção do ódio em algum episódio anterior do ESPECast. Dissemos que Freud entende que o primeiro sentimento de um ser humano não é o amor e sim o ódio. Ódio esse que se produz em função de uma insatisfação: quando o bebê está amamentando e seu ato é interrompido por um adulto, nessa experiência que não é apenas uma nutrição, mas também uma experiência de satisfação. Ao ser interrompida essa experiência de satisfação, o primeiro que se sente é o ódio. Ódio este focado para o objeto que antes era de satisfação e agora se transforma em insatisfação. O primeiro movimento então é o de excluir. O segundo é de eliminar.
Assim funciona o ódio no bebê. Se ele não elabora suas insatisfações quando criança, adolescente e atinge a fase adulta, ele não terá outra alternativa do que repetir aquilo que ele fez diante de uma insatisfação quando era bebê: ele localiza um objeto que considera ser de insatisfação e primeiro exclui para depois tentar eliminar.
Assim aparecem também algumas formas de racismo, de misoginia, de todo tipo de preconceito.
Agora vamos tratar da raiva, da cólera, da ira, que é algo de uma ordem diferente.
A Raiva em Lacan
Lacan cita algo sobre a cólera, a raiva, a ira, em pelo menos dois lugares. No “Seminário 6: O Desejo e sua Interpretação” vai dizer que é muito difícil não perceber que um afeto fundamental como a raiva ou a cólera, é o Real chegando quando temos tecida uma bela trama simbólica e tudo vai bem, tudo vai sob a lei. Por vontade, por trabalho, por esforço, por mérito, conseguimos fazer algo muito bem “amarradinho” e, de repente, algo do Real aparece e desmonta toda essa trama feita. Quando isso acontece aparecem a ira, a cólera, a raiva.
No “Seminário 7: A Ética da Psicanálise”, Lacan vai dizer o seguinte: “a cólera, a ira, a raiva é uma paixão, sem dúvida, que se manifesta por um certo correlato orgânico ou fisiológico, com um certo sentimento mais ou menos hipertônico, inclusive de elação, mas que quiçá necessita algo assim como uma reação do sujeito a uma decepção.” – quer dizer: a cólera aparece vinculada a uma decepção. Nos decepcionamos, ficamos frustrados e o modo que temos de lidar com a decepção, com o fracasso, é a raiva.
O fracasso é uma correlação esperada entre uma ordem simbólica e uma resposta do real. É interessante que Lacan nos propõe pensar o sentimento de raiva - essa experiência de ira, de cólera - como o encontro entre o real e o simbólico. Ou, se quisermos dizer de outra forma, é quando o real invade aquela trama simbólica e, de algum modo, desajusta aquilo que nós tentamos manter a qualquer custo.
Os preguinhos e os buraquinhos
Em outras palavras, e de modo humorístico, nos diz Lacan que é “quando os preguinhos não entram nos buraquinhos”. “Essa é a figura que Jacques Lacan utiliza para falar da raiva, da cólera, da ira. É quando a criança, tentando enfiar brinquedinhos de círculo, de quadrado, de triângulo, dentro dos buraquinhos, os brinquedinhos não entram, quer dizer, há algo que não encaixa.” – nos explica Daniel.
Esse algo que não encaixa é, figurativamente, o que Lacan está abordando como esse encontro entre o real e o simbólico. É uma posição em que o sujeito não consegue suportar o real e todos os esforços de articulação simbólica e imaginária são desmontados..
Por isso sentimos raiva.
Até nosso próximo artigo!
Assista ao episódio completo:
Quer saber mais?
Conheça nossa plataforma online dedicada à transmissão da psicanálise. São mais de 300 horas de cursos e conteúdos ligados ao campo da psicanálise, produzidos por pesquisadores(as) e analistas que são referência no Brasil e no mundo.
Transcrição e adaptação:
Gustavo Espeschit é psicanalista, professor e escritor. Pós-graduado em Fundamentos da Psicanálise: Teoria e Clínica pelo Instituto ESPE/UniFil e Pós-graduado em Clínica Psicanalítica Lacaniana pela mesma instituição. Formado em Letras Inglês/Português com pós-graduação em Filosofia e Metodologia do Ensino de Línguas.
Autor do episódio:
Daniel é psicanalista, pesquisador e professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutor e Mestre em Filosofia pela Unicamp, com pós-doutorado na Michigan State University nos EUA e em Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn na Alemanha. Autor de diversos livros de Filosofia e Psicanálise. Obteve o título de licenciado em filosofia em 1992 na Universidade Nacional de Rosario (Argentina). Publicou artigos científicos em revistas nacionais e internacionais, livros e capítulos de livros sobre filosofia e psicanálise.
Comments