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Porque tanto ódio hoje: um estudo psicanalítico

Atualizado: 5 de set.


“Paixões movidas por instintos são mais fortes 

que interesses ditados pela razão.” (Freud, 1930)


Longe de ser uma questão simples, o ódio e a violência são temas que atravessam a história da civilização desde tempos imemoriais, como mostra o estudo de Sigmund Freud em O mal-estar na civilização.


Como esse tema caminha lado a lado com o desenvolvimento da cultura, corremos o risco de analisar, de forma apressada, que o ser humano também se desenvolve da mesma maneira.


Porém, para a psicanálise, o ser não se desenvolve — aqui, falamos do sujeito. E o sujeito, diferentemente do ser, se constitui.


Diante disso, como podemos analisar, psicanaliticamente, o caminho do ódio e da violência, suas possíveis causas na sociedade e os efeitos que produzem na constituição do sujeito?


Quem nos ajuda a refletir sobre essa temática é a professora Renata Wirthmann, autora do percurso Psicanálise na Contemporaneidade, disponível na plataforma do ESPECast.


Boa leitura!



O Sujeito e o Ideal de Pertencimento

Para compreender como esses afetos, o ódio e a violência, se inscrevem na constituição do sujeito, vamos iniciar nossa análise a partir da teoria lacaniana, especialmente por meio da leitura do grafo do desejo, estrutura que permite articular linguagem, cultura e sujeito em um mesmo campo.


Segundo Jacques Lacan, por meio do conceito da libra de carne, nascemos corpo. Mas, para nos tornarmos sujeitos, é preciso o atravessamento da linguagem. Inicialmente, como seres de necessidade, nos dirigimos ao Outro (a mãe, por exemplo) em busca de satisfação.


É nesse encontro com o Outro, designado por Lacan como ponto de basta, que o sujeito é nomeado. Esse ato de nomeação inaugura uma série de possibilidades na constituição subjetiva:


  • transferência na análise;

  • formação de sintoma;

  • emergência do desejo e, posteriormente, da demanda;

  • retorno ao estádio do espelho.


Como argumenta a professora Renata, “o sujeito se constitui parlêtre, ou seja, o ser se constitui atravessado pela linguagem, essa carne atravessada pela linguagem chamada sujeito.”


Quando esse sujeito, atravessado pela linguagem, articula seu discurso, enuncia algo, ele não diz qualquer coisa. Para Renata, “você não está dirigindo qualquer pergunta, qualquer discurso para qualquer Outro. É um discurso que já tem dentro dele a lógica, a enunciação do Outro.”


É justamente aí que se pode localizar a emergência dos discursos de ódio. Quando racismo, machismo e outras formas de violência aparecem no enunciado, carregam em sua estrutura a enunciação, uma lógica que revela como tais discursos estão inscritos e sustentados pela própria cultura.


O sujeito, ao buscar sentido para seu discurso, volta-se ao Outro. É no Outro que ele tenta se reconhecer, ser nomeado, obter uma resposta. Esse movimento marca sua entrada na cultura.


A estrutura descrita no grafo do desejo evidencia esse percurso: da necessidade à linguagem, da falta ao desejo, da demanda à fantasia. Essa fantasia é sustentada por duas perguntas fundamentais que o sujeito tenta responder, sem jamais encontrar resposta definitiva:


  • O que o Outro quer de mim?

  • O que eu represento para o Outro?


Essas perguntas são motoras do desejo, e suas respostas, imaginárias, sustentam a fantasia que organiza o modo como o sujeito se posiciona no mundo.


O grafo se conclui no ponto do ideal do eu, lugar em que o sujeito projeta aquilo que acredita ser necessário para ser aceito pelo Outro, alcançar reconhecimento e pertencer à cultura.

“O sujeito deseja ser aceito pelo Outro, se articular na cultura, alcançar o ideal do eu,” esclarece Wirthmann.


Com essas coordenadas traçadas por Lacan sobre a constituição do sujeito e sua relação com o Outro, podemos agora retornar a Freud para compreender como essas formulações se enraízam em sua teoria.



A Agressividade na Cultura

Estamos, na contemporaneidade, observando e tentando entender o aumento da violência e as passagens ao ato. Como seria possível, então, que o sujeito, cuja natureza agressiva é apontada por Freud, abra mão da violência? 


Para a professora Renata Wirthmann, há uma inclinação do sujeito a renunciar a esse impulso, seja pela via do amor, seja pela via da morte.


Entretanto, é importante pensar: de que maneira o sujeito poderia abrir mão da violência, caso não se reconheça como violento?


Quando pensamos em coletividade, todos achamos que o mundo é violento e tem que ser menos violento. No entanto, quando a gente aponta para o indivíduo, ele não se considera parte dessa violência”, ressalta Wirthmann.


De acordo com Freud, mecanismos como a culpa e a vergonha, ambos decorrentes do recalque e da foraclusão, seriam potenciais freios à violência. Mas, pelo que observamos na sociedade, tais mecanismos são insuficientes para desencadear um esforço civilizatório capaz de conter a agressividade do sujeito.


No que tange à culpa, esta exerce efeito inibidor da violência apenas quando o sujeito reconhece a autoridade do grupo ao qual se sente vinculado e devedor.


Nesse sentido, Wirthmann enfatiza a relevância do conceito freudiano de “narcisismo das pequenas diferenças” para compreender tais fenômenos.


Sempre é possível ligar um grande número de pessoas pelo amor, desde que restem outras para que se exteriorize a agressividade. Certa vez discuti o fenômeno de justamente comunidades vizinhas, e também próximas em outros aspectos, andarem às turras, zombarem uma da outra — como os espanhóis e os portugueses, os alemães do norte e os do sul, os ingleses e os escoceses etc. Dei a isso o nome de ‘narcisismo das pequenas diferenças’.” (Freud, 1930)


Na ausência dessa função reguladora, o rigor e a severidade que mantêm a união declinam. Quando o grupo ao qual o sujeito pertence (o Outro) sinaliza e reprova seu ato, o sujeito se vê barrado por essa “lei” que o legitima, tornando-o pertencente e, portanto, devedor.


Uma estratégia eficaz de demonstração de pertencimento a um grupo, sob liderança autoritária, consiste em atacar o grupo adversário, ainda que esse adversário se dê no plano do imaginário.


O grupo das meninas jovens ataca o grupo das mulheres adultas; o grupo das pessoas brancas ataca o grupo das pessoas negras; o grupo das pessoas hétero ataca o grupo das pessoas LGBTQIA+”, exemplifica Renata.


Quando um grupo reivindica a posse da única verdade, qualquer outra perspectiva é interpretada como um ataque violento.


Esse tipo de vínculo amoroso denuncia características possessivas e exclusivistas, que conduzem à destruição interna. 


Em determinado momento, essa dinâmica implode. O ódio previamente dirigido ao grupo externo volta-se para o interior, recai sobre o líder que foi destituído, independentemente das razões que levaram a tal destituição.



CoNCLUSÃO

Diante dessa dinâmica da agressividade inscrita na cultura e nas relações sociais, cabe agora refletirmos sobre os desdobramentos dessa violência na constituição do sujeito e as possíveis saídas para a civilização.


O amor possessivo e exclusivo que alimenta o ódio, em algum momento, implode sobre si mesmo, voltando-se contra o próprio grupo e seus líderes. 


Essa dinâmica revela as fragilidades do laço social e das estruturas simbólicas que sustentam a cultura.

O ódio não é apenas um fenômeno individual, mas expressão das tensões entre o desejo de reconhecimento do sujeito e as limitações das formas culturais de pertencimento. 


Compreender essa tensão é fundamental para pensar caminhos que superem a violência e fortaleçam laços sociais capazes de acolher a alteridade.



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Transcrição e adaptação:

Renata Suhett é jornalista, especialista em marketing, escrita e mídias sociais. Formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário de Barra Mansa - RJ.

 
 
 

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