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Psicanálise, Saúde mental e a Indústria das evidências: uma análise contemporânea


Nos últimos anos, as chamadas práticas baseadas em evidências (PBE) têm ganhado protagonismo nas políticas públicas de saúde mental, nos currículos de formação — especialmente na área da psicologia — e nos critérios de financiamento de pesquisas.


Mas o que está por trás da noção de evidência? Que tipo de saber é reconhecido como válido? E, principalmente, onde se insere a psicanálise nesse cenário?


Essas são algumas das perguntas centrais que movem este artigo, construído com base no percurso “Psicanálise, Saúde Mental e a Indústria das Evidências”, conduzido pelo psicanalista Marco Corrêa Leite.

Em sua abordagem rigorosa e crítica, Marco Leite evidencia como o campo da saúde mental vem sendo atravessado por disputas epistemológicas, políticas e econômicas que determinam, muitas vezes de forma silenciosa, o que pode ou não ser considerado ciência, clínica ou tratamento legítimo.


A partir de uma análise que articula a história da psiquiatria, a elaboração do DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), a institucionalização das PBE e a tentativa de cientificização dos transtornos mentais, sua tese levanta uma questão crucial: será que a transformação dos transtornos mentais em doenças, sem comprovação empírica suficiente, envolve mais interesses institucionais do que critérios científicos claros?


Essa e outras perguntas serão desenvolvidas e amplamente articuladas por Marco Leite ao longo do percurso completo disponível no EspeCast. Neste artigo, você conhecerá algumas das ideias centrais abordadas no percurso.


Ao final da leitura, fica o convite para acompanhar as aulas disponíveis na plataforma, onde essas reflexões se desdobram em novas camadas de análise, fundamentais para quem deseja pensar criticamente os rumos da saúde mental contemporânea.


Boa leitura!



O que está em jogo ao falar em evidência na saúde mental

A noção de “evidência” no campo da saúde mental ganhou centralidade nas últimas décadas, sendo alçada ao posto de critério normativo para validação de práticas clínicas e formulação de políticas públicas. 


Aparentemente neutra, técnica e objetiva, essa ideia opera, no entanto, como um dispositivo político-epistêmico, muitas vezes orientando decisões institucionais. Seria ela, hoje, um dos critérios que regulam o que pode ou não ser reconhecido como tratamento legítimo?



A prática baseada em evidências, inserida como diretriz em diversos contextos, articula-se diretamente ao discurso hegemônico do DSM — o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais — que, ao longo de suas edições, consolidou um modelo de classificação que transforma experiências psíquicas em categorias clínicas supostamente neutras.


Trata-se de uma lógica que busca consolidar a psiquiatria como uma ciência natural, espelhando-se nas disciplinas biomédicas. No entanto, como aponta Marco Leite, essa operação possui escassa sustentação empírica: é uma tentativa de cientificizar a psiquiatria.


A crítica, portanto, não se limita ao DSM, mas alcança a própria estrutura do que se entende por “doença” no campo da medicina. Ao transpor esse modelo para a saúde mental, desconsidera-se um dado essencial: não há comprovação empírica sólida de que os chamados transtornos mentais constituam, de fato, doenças.


Essa tensão revela um desajuste estrutural. Enquanto a medicina opera, em muitos casos, com marcadores objetivos — exames laboratoriais, imagens, alterações bioquímicas —, a saúde mental lida com fenômenos subjetivos, contextuais e simbólicos. 


Quando se trata esses fenômenos como se compartilhassem da mesma natureza dos marcadores orgânicos, descontextualiza-se o sofrimento psíquico de sua historicidade e singularidade. O resultado é a conversão de experiências humanas em quadros genéricos e padronizados, prontos para serem encaixados em protocolos terapêuticos industrializáveis.


Nesse ponto, a noção de evidência deixa de funcionar apenas como parâmetro técnico e revela sua face normativa e política. O que se aceita como evidência, muitas vezes, é determinado por decisões institucionais, econômicas e ideológicas. 


Como alerta Marco Leite, o campo da saúde mental vem sendo capturado por uma racionalidade que suprime as diferenças entre métodos experimentais e práticas clínicas, reduzindo a complexidade do sofrimento psíquico a um modelo de checklist.



psicanálise diante das práticas baseadas em evidências

A centralidade das práticas baseadas em evidências (PBE) nas políticas de saúde mental impõe não apenas critérios de avaliação de eficácia, mas também modelos específicos do que pode ser reconhecido como saber legítimo.


Nesse cenário, a psicanálise habita uma borda crítica — tensionada, mas insistentemente resistente.

Como aponta Marco Leite, ao tentar cientificizar-se nos moldes da biomedicina, a psiquiatria passou a tratar os transtornos mentais como doenças, embora falte comprovação empírica sólida para sustentar essa equivalência.


Essa tentativa de enquadrar o sofrimento psíquico em classificações objetivas o descola de sua dimensão subjetiva e histórica. O problema, segundo Marco, não está na busca por critérios rigorosos, mas na redução da ideia de ciência a um único paradigma de validação empírica, centrado na experimentação e na repetição estatística. 


Essa lógica desconsidera formas de saber que se orientam por outras epistemologias, como é o caso da psicanálise. Fundada na escuta do sujeito e na investigação do inconsciente, a psicanálise trabalha com variáveis singulares e efeitos que não se prestam à mensuração direta.


Ainda assim, como observa Leite, há uma longa tradição de pensadores — entre eles Gaston Bachelard, Alexandre Kojève e Thomas S. Kuhn — que defendem a cientificidade da psicanálise com base em outros critérios.


Como a padronização do tratamento e a busca por resultados rápidos estão em sintonia com interesses institucionais e econômicos, a psicanálise oferece resistência por não se submeter facilmente a tais critérios.


Contra a lógica da adaptação e da funcionalidade, ela sustenta o tempo do sujeito, o atravessamento do sintoma e o percurso clínico como experiência singular.


O desafio, então, é outro: como pensar os efeitos da análise em um campo onde só se reconhece como evidência o que pode ser medido?



Evidências e efeitos clínicos: o que dizem as pesquisas

Se o que conta como “evidência” é aquilo que pode ser medido, quantificado e repetido em contextos experimentais controlados, como avaliar os efeitos de uma prática como a psicanálise? 


Essa pergunta não se limita à epistemologia, mas tem consequências concretas para a permanência da psicanálise no debate público sobre saúde mental.


Estudos apontam a psicanálise, frequentemente, como uma abordagem de efeitos mais duradouros, especialmente em casos complexos, como transtorno de personalidade borderline, depressão refratária ou transtorno obsessivo-compulsivo grave.


Contudo, os parâmetros usados para definir eficácia nem sempre são compatíveis com a lógica da escuta analítica. 


A insistência em modelos quantitativos e em instrumentos padronizados muitas vezes ignora justamente aquilo que a psicanálise busca preservar: a singularidade do sujeito. 


A duração do tratamento, por exemplo, costuma ser vista como um problema, quando, para a análise, o tempo é parte indissociável do processo clínico.


Marco Leite levanta uma hipótese relevante: talvez o que produza efeitos duradouros não seja apenas o método, mas também a dose do tratamento, isto é, a quantidade de sessões e o tempo dedicado ao percurso analítico. 


“Alguns pacientes, que passam por processos mais longos e sustentados, tendem a apresentar menor uso de medicamentos, redução no número de consultas médicas e maior estabilidade subjetiva no longo prazo”, aponta Marco.


Mas por que esses efeitos não ganham visibilidade? Em parte, porque os modelos de avaliação em vigor não estão desenhados para captar transformações que escapam ao protocolo. 


Em parte também, porque os financiamentos para pesquisas de médio e longo prazo são escassos — especialmente quando elas não interessam à lógica da indústria farmacêutica, que frequentemente sustenta boa parte das agendas de pesquisa em saúde mental.


Há aí um círculo vicioso: os estudos que poderiam demonstrar os efeitos específicos da análise não recebem fomento, justamente porque seus resultados não se encaixam no modelo vigente de evidência. 


Enquanto isso, intervenções mais curtas, com resultados rápidos e mensuráveis, continuam sendo privilegiadas, mesmo quando seus efeitos se mostram menos estáveis a longo prazo.



O lugar da psicanálise nas políticas públicas de saúde

O reconhecimento institucional de uma prática não depende apenas de sua eficácia terapêutica, mas também da compatibilidade com as lógicas de gestão, financiamento e consumo dos sistemas de saúde.


A psicanálise, por seu tempo prolongado, método singular e ética própria, enfrenta obstáculos para sua inserção nas políticas públicas, especialmente em contextos onde predominam práticas breves e o uso de medicamentos como norma. 


No Canadá, por exemplo, há uma forma indireta de legitimação: institutos vinculados ao sistema público (Medicare) podem oferecer tratamentos psicanalíticos cobertos pelo Estado, indicando uma abertura à pluralidade terapêutica.


Ao propor um tempo e uma clínica do sujeito que não se reduzem ao diagnóstico, a psicanálise desafia o modelo vigente e mantém sua presença nas disputas políticas em saúde mental.



CoNCLUSÃO

O artigo revela que as práticas baseadas em evidências, embora sejam importantes para o aprimoramento da saúde mental, não são neutras nem isentas de interesses políticos, econômicos e epistemológicos. 


O modo como se define o que é “evidência” e se estabelece o que deve ser tratado como ciência impacta diretamente o reconhecimento de diferentes abordagens clínicas.


A psicanálise, ao oferecer uma escuta que respeita a singularidade do sujeito e um tempo terapêutico não reduzido à lógica da rapidez e padronização, desafia o paradigma. 


Sua cientificidade, longe de estar negada, repousa em outros critérios, que exigem uma abertura para epistemologias plurais e formas diversas de conhecimento.


Além disso, evidências clínicas e econômicas indicam que o tratamento psicanalítico pode produzir efeitos duradouros e benefícios que vão além do que as métricas tradicionais captam — mas essa realidade permanece subestimada diante de interesses que moldam as políticas públicas e a produção científica.


Assim, pensar criticamente a saúde mental contemporânea passa pela necessidade de questionar as bases do que consideramos válido, eficaz e legítimo. 


O desafio é ampliar o olhar para além do que pode ser facilmente medido, reconhecendo a complexidade do sujeito e a riqueza das práticas clínicas que o acompanham.




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Transcrição e adaptação:

Renata Suhett é jornalista, especialista em marketing, escrita e mídias sociais. Formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário de Barra Mansa - RJ.


Autor do episódio:

Daniel é psicanalista, pesquisador e professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutor e Mestre em Filosofia pela Unicamp, com pós-doutorado na Michigan State University nos EUA e em Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn na Alemanha. Autor de diversos livros de Filosofia e Psicanálise. Obteve o título de licenciado em filosofia em 1992 na Universidade Nacional de Rosario (Argentina). Publicou artigos científicos em revistas nacionais e internacionais, livros e capítulos de livros sobre filosofia e psicanálise.




 
 
 

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