Suicídio e as Patologias do Desejo no Contemporâneo
- ESPEcast
- 12 de set.
- 6 min de leitura
Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), divulgados pelo Ministério da Saúde do Brasil em 2022, mais de 700 mil pessoas morrem por suicídio todos os anos no mundo.
Isso significa que, a cada 100 mortes registradas, uma é causada por suicídio.
Trata-se de um fenômeno complexo, que não pode ser reduzido a uma única causa: fatores psicológicos, biológicos, sociais e culturais se entrelaçam na experiência singular de cada pessoa.
Considerando que a psicanálise se dedica ao amparo do sujeito e à escuta do seu sofrimento, como podemos compreender o aumento dos índices de tentativas de suicídio, passagens ao ato bem-sucedidas e ideação suicida na clínica contemporânea?
Sendo esta última entendida como o ato de nomear, com todas as letras, a ideia ou o flerte com a própria morte, qual é o papel do psicanalista diante desse tipo de sofrimento psíquico?
Essas questões estiveram no centro da aula aberta com a psicanalista Maria Homem, no canal do Instituto ESPE, e este artigo é fruto dessa conversa, buscando refletir sobre o lugar do desejo, o tempo e os laços sociais na contemporaneidade.
Boa leitura!
O Tempo e o Espaço como Condições Psíquicas
A ideação suicida pode se articular a fantasias fundamentais nas quais o sujeito se imagina deixando de existir, experimentando uma espécie de “pausa” ou “desaparecimento do eu”.
É como se fosse possível apertar um botão e colocar a vida em modo de espera, deixando o mundo seguir seu curso enquanto o sujeito se retira temporariamente.
“Essa suspensão, no entanto, não nos é dada. Podemos até criar artificialmente pequenas ilhas de descanso como férias, pausas, respiros”, argumenta Maria Homem.
O que observamos na contemporaneidade, porém, é um desejo titubeante, enfraquecido diante das exigências e da velocidade do mundo, em que a pausa para o eu frequentemente se choca com a ideação suicida ou com o risco da passagem ao ato.
Surge, então, a pergunta central: por que está cada vez mais difícil sustentar a vida como exigimos ao eu? Uma das respostas pode estar no modo como experimentamos o tempo e o espaço hoje.
Em outras épocas, a vida parecia ter mais tempo e um ritmo mais lento. Essa diferença é crucial: o tempo, do ponto de vista psíquico, é condição necessária para a elaboração, para a subjetivação e para que as experiências vividas adquiram densidade.
Sem esse espaço temporal, corremos o risco de transformar a vida em uma engrenagem que gira incessantemente e esmaga o sujeito, deixando a sensação de que, ao final do dia, nada sobra, nem mesmo a memória do que foi vivido.
Três Momentos Históricos do Sentido da Vida
A forma como nos relacionamos com o tempo e o espaço mudou ao longo da história, e essas mudanças também transformaram a maneira como sustentamos o sentido da vida.
Podemos identificar três momentos marcantes: pré-modernidade, modernidade e contemporaneidade que ajudam a compreender o cenário atual e suas repercussões na saúde psíquica.
Pré-Modernidade: o amparo da ordem cíclica.
Na pré-modernidade, o mundo era percebido como fechado, regido por ciclos previsíveis: o eterno retorno das estações, das colheitas, das festas religiosas. Além dessa certeza repetitiva, havia uma sustentação transcendental: crença em forças divinas, em uma lógica patriarcal e ordenada que oferecia sentido à vida do sujeito.
“Era uma lógica de amparo: podia-se ter menos liberdade individual, mas havia mais estabilidade. Havia menos caos criativo, mas mais ordenamento e previsibilidade”, relata Maria Homem.
O destino, muitas vezes, era determinado pelo lugar social de nascimento. Quem nascia nobre herdava o trono; quem nascia plebeu poderia ser ferreiro, agricultor ou artesão, seguindo uma programação já dada.
Modernidade: a ruptura e a aceleração.
Com a modernidade, esse quadro se rompe. O sujeito ganha o direito — e sobretudo o dever — de criar a própria vida. A liberdade traz consigo um ônus: é preciso inventar uma identidade, uma função, uma narrativa pessoal.
A modernidade marca o início da aceleração das exigências egoicas e superegoicas. É preciso ser um eu próximo ao “ideal de eu”, alguém que performa, que se mostra produtivo, eficiente e realizado.
Surge também um supereu mais exigente, sempre cobrando: “Você está ganhando só isso? Está desempregado? Não aproveitou o fim de semana? O que fez ontem?” Essa pressão constante reconfigura a relação do sujeito com seu próprio desejo.
Contemporaneidade: a exaustão e o infinito
Hoje, a lógica contemporânea parece dizer: “Não quero mais, estou cansado”.
Há uma proximidade entre esse cansaço extremo e a ideia de desistir. As exigências não se limitam mais a conquistas materiais, embora estas ainda importem, mas se deslocam também para o campo das experiências.
Se antes o sujeito se media pelo que possuía, agora mede-se pelo que viveu. No entanto, a experiência, por definição, é infinita: não há como viver tudo.
O supereu contemporâneo cobra: “Você não vale tanto, não conquistou tanto, não viveu tanto”. Esse discurso reforça comparações imaginárias com o outro e fragiliza a construção de uma imagem consistente de si, dificultando, inclusive, o estabelecimento de laços afetivos.
Solidão, Desamparo e Crise de Sentido
Na lógica contemporânea, os laços sociais sofrem sob o peso das exigências performáticas. O sujeito conecta-se mais à imagem do que deveria ser, alimentada por comparações constantes, do que a si mesmo ou ao outro.
Antes, a busca estava centrada nos bens materiais; agora, deslocou-se para a experiência, que, por ser infinita, nunca satisfaz plenamente. Essa tentativa de escapar da falta pode levar a uma solidão radical.
É um isolamento que não se resolve com companhia física, pois está enraizado na dificuldade de estabelecer um laço afetivo real e de amor, justamente porque falta ao sujeito uma imagem de si.
Com o tempo, o amparo, o eixo e a conexão, internos e externos, deixam de existir. Viver torna-se árido, cansativo, desgastante. A “seta do sentido” que, na pré-modernidade, apontava para um horizonte divino ou transcendente, perde-se.
“O movimento histórico da fé em Deus para a fé no eu gerou uma virada epistêmica que, hoje, já não se sustenta. Quando o eu falha em oferecer amparo, o ato de ‘sair da vida’ pode se apresentar como uma forma de pausa diante do insuportável.” — Maria Homem.
Essa tensão produz sintomas como crises de angústia, ataques de pânico e um profundo desamparo. A promessa moderna de um eu autônomo e pleno não se cumpriu, e a lógica contemporânea, voraz, continua exigindo que se construa esse eu sem cessar.
No entanto, quanto mais inalcançável essa construção, mais vulnerável o sujeito se torna ao colapso.
Conclusão: possíveis direções de manejo
Diante desse cenário, a clínica psicanalítica é convocada a criar espaços onde o tempo possa desacelerar, permitindo que o sujeito elabore suas experiências e reencontre densidade na própria vida.
Tempo e espaço não são apenas categorias externas, mas condições primordiais para o funcionamento psíquico: é neles que a mente consegue operar, digerir e simbolizar o vivido.
Encontrar novas formas de pausa, que não se confundam com a suspensão radical da vida, torna-se fundamental. Isso pode significar criar brechas no cotidiano para o descanso real, a reflexão, o encontro com o outro.
A psicanálise, ao oferecer uma escuta qualificada e não apressada, sustenta essa possibilidade de pausa, ajudando o sujeito a reconhecer e nomear seu sofrimento, sem reduzi-lo a diagnósticos ou receitas rápidas.
Outro ponto central é a reconexão: com o próprio desejo e com os laços afetivos. Essa reconexão, possível dentro do espaço analítico, pode devolver ao sujeito um eixo interno, permitindo que a vida deixe de ser apenas uma engrenagem árida e passe a ter sentido novamente.
Como lembra Maria Homem, o desafio é “ir com tempo, devagar, junto”, encontrando modos singulares de retomar o fio do desejo e de reconstituir o amparo perdido.
Nesse caminho, não se trata de prometer uma vida sem sofrimento, mas de construir um lugar onde seja possível viver com ele — e, ainda assim, escolher continuar.
Conheça o ESPECast: A Plataforma de Estudos de Psicanálise
Quer estudar Psicanálise na maior plataforma dedicada ao campo?
Torne-se um membro e tenha acesso a mais de 300 horas de cursos e conteúdos exclusivos, além de ter acesso a maior comunidade dedicada à psicanálise do Brasil.
Ao se tornar membro, você terá acesso a:
Mais de 300 horas de cursos e conteúdos exclusivos sobre os mais diversos temas;
Aulas com os maiores nomes da psicanálise brasileira;
Encontros ao vivo para tirar dúvidas e dialogar com especialistas.
Uma comunidade ativa com mais de 2.000 assinantes, pronta para trocar experiências e fortalecer vínculos.
Junte-se agora à maior comunidade dedicada à psicanálise no Brasil — e aprofunde seu olhar sobre aquilo que (nos) falta.
Transcrição e adaptação:
Renata Suhett é jornalista, especialista em marketing, escrita e mídias sociais. Formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário de Barra Mansa - RJ.
Referências Bibliográficas:
SPIELREIN, S. A destruição como origem do devir. 1912.
CAROTENUTO, A. Diário de uma secreta simetria: Sabina Spielrein entre Jung e Freud. Roma: Armando Editore, 1980.
CROMBERG, Renata Udler. Sabina Spielrein: uma pioneira da psicanálise – obras completas / volume 1. São Paulo: Edgard Blücher Ltda., 2021.
CROMBERG, Renata Udler. Sabina Spielrein: uma pioneira da psicanálise – obras completas / volume 2. São Paulo: Edgard Blücher Ltda., 2021.
CROMBERG, R. U. Sabina Spielrein – Parte 3. Entrevista. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wZzzRard2y4. Acesso em: 24 ago. 2025.
Comentários