No episódio 98 do ESPECast, disponível no YouTube e no Spotify, o professor Daniel Omar Perez nos guia sobre a relação entre Psicanálise e Trabalho.
Boa leitura
O Normal e o Patológico
No início da psicanálise, Freud se interroga acerca do que seria saudável do ponto de vista psicanalítico – considerando que ela não trabalha com um padrão normativo.
Algum tempo depois dele, George Canguilhem, escreveu um livro chamado O Normal e o Patológico, que mostra como a determinação de padrões decide aquilo que é normal a partir daquilo que é patológico na biologia. Isso se desloca para a medicina e se dissemina não somente nas ciências da natureza - nas ciências médicas e biomédicas - mas também nos problemas sociais, nos conflitos psíquicos, nos problemas psicológicos e psiquiátricos. Isso quer dizer que, de alguma forma, o normal e o patológico – definido a partir do patológico dentro da biologia – tem uma característica fundamental para decidir o que é a doença, a enfermidade: o marcador biológico.
O que hoje se denomina como distúrbio – ou transtorno - mental não apresenta um marcador biológico. “É por isso que - a meu entender - se deve ter mudado a ideia de doença, pelo menos na associação dos Estados Unidos, se mudou do termo doença para o termo distúrbio, que se traduziu para o português como transtorno.” – pontua professor Daniel.
Sintetizando:
Para se decidir o que é normal e o que é patológico se instaura, então, um padrão normativo. Este padrão pode ter marcadores biológicos – como no caso da diabetes ou do colesterol por exemplo – e pode também não ter. Não havendo estes marcadores, o que se define são padrões normativos de condutas, de comportamentos. Determinados comportamentos e determinadas condutas passam a ser consideradas, socialmente, normais, enquanto que outras passam a ser considerados patológicos. Trabalhando então com este padrão normativo, se define o que é normal do que é patológico.
Normal e Patológico na Psicanálise
Na psicanálise Freud não trabalha com um padrão normativo porque ele entende que o mal-estar psíquico, o sofrimento e a dor psíquica, não podem ser mensurados de maneira a se estabelecer uma escala entre normal e patológico que possa vir a ser utilizada e aplicada a toda e qualquer pessoa – ou pelo menos a maioria delas ou a um grupo específico.
“Então, como fazer para entender que uma pessoa pode, entre muitas aspas, estar saudável e não estar doente se não temos um marcador biológico, mas também não nos guiamos por padrões de comportamento?” – nos questiona Daniel.
A resposta é: Freud entendeu, e isso passou para a história como um tipo de fórmula, que a pessoa saudável seria aquela que seria capaz de amar e de trabalhar. “Não é exatamente o termo livre - o termo “arbeit”- que Freud utiliza, mas é quase isso.” – pontua Daniel. “A pessoa que pode ter relacionamentos com outras pessoas, relacionamentos afetivos com outras pessoas, e pode ter algum serviço, quer dizer, que pode, de algum modo, entrar nas relações de troca. Que pode fazer alguma coisa.” – complementa.
“Não é exatamente trabalho, no sentido que poderíamos entender como trabalho assalariado, quer dizer, não é o que Freud disse: para você ser saudável, você tem que casar e ter um salário. Você pode até casar e ter um salário, mas o amor e o trabalho é mais ter relações afetivas com as pessoas, sejam elas as que forem, de acordo com a vida, a história do paciente, e ter essa possibilidade de fazer alguma coisa, de estar disposto a fazer alguma coisa.” – Daniel Omar Perez
O trabalho – neste sentido que estamos postulando, em um sentido genérico e não como um trabalho intelectual ou trabalho disciplinado, em um sentido de estabelecer um fazer – e o amor seriam, então, marcadores que denominariam uma pessoa como saudável. A capacidade de trabalhar e de amar. Pode amar? Pode trabalhar? Pode fazer algumas coisas? Está disponível para as relações afetivas? Em caso positivo, pode-se dizer que se está levando uma vida normal, mesmo quando essa vida apresenta diferentes problemas, circunstâncias difíceis, atravessa fases de tristezas e de perdas. Isso não significa que haja aí um conflito psíquico ou um sofrimento psíquico, já que nem todo sofrimento, nem toda dor, nem todo mal-estar são psíquicos.
“O trabalho aí parece como que um marcador de saúde mental.” – conclui Daniel.
O trabalho como sintoma
Daniel nos orienta que o trabalho também pode ser um sintoma, ou seja, um elemento que ordena a vida do sujeito, sendo um significante com o qual o sujeito se representa para outro significante que não o representa.
“Quer dizer, de alguma forma, me represento no significante trabalho - o trabalho me representa como significante - e eu me identifico, me reconheço, levo adiante a minha identidade a partir desse significante e dependendo da relação que eu tenho com o desejo e a interdição, é o modo em que eu vou lidar com isso que me representa: o trabalho.” – explica.
É possível portanto, neste cenário, que o sujeito consiga levar adiante um trabalho de modo leve, agradável, com alguns problemas de percurso, mas nada muito grave. Mas pode ser também que o sujeito leve este trabalho ao paroxismo, ou seja, a um extremo, e que o ambiente de trabalho se torne, para esse sujeito, algo insuportável. Nesta segunda hipótese o trabalho já não aparece mais como Freud indica ser um índice de saúde mental.
Existem ambientes de trabalho que podem funcionar como gatilhos de determinados conflitos psíquicos, desencadeando afetos, emoções, sensações das mais diversas, que, aí sim, se transformam em uma dor, em um sofrimento. Assim podem aparecer sintomas como cansaço crônico, tanto físico como mental. Este ambiente de trabalho então se torna, não mais um ambiente de sublimação ou de realização de um desejo, mas um lugar onde se experimenta uma sensação de medo, um lugar onde se experimenta este cansaço crônico, um lugar onde se experimenta o pânico, que pode desencadear ansiedade, angústia, formigamentos, sensação de falta de ar, taquicardia, sudorese, reações alérgicas, enxaquecas, problemas digestivos e tantos outros sintomas.
Este são os sintomas que os médicos chamam de emocionais e que Freud vai denominar como conflitos psíquicos. São situações possíveis de serem abordadas a partir do trabalho analítico.
Conclusão
Teríamos, então, uma primeira concepção de trabalho: trabalho como saúde.
Uma segunda concepção de trabalho: ambiente no qual emergem, de uma forma ou de outra, conflitos psíquicos que se derivam em sintomas, em problemas de relacionamento.
A terceira concepção de trabalho: o trabalho clínico, ou seja, o trabalho como processo de elaboração a partir do qual um processo analítico tenta transformar aquilo que é da ordem do sofrimento, da dor e do mal-estar, em algo que produza um mínimo de prazer.
Para isso é preciso um trabalho clínico analítico de elaboração que permita uma mudança de posição do sujeito diante dos significantes que o representam, diante daquilo que ele entende como sua própria identidade e diante da relação do objeto com o qual ele se relaciona: o trabalho.
O trabalho como saúde. O trabalho como doença. O trabalho como processo de elaboração.
Até nosso próximo artigo.
Assista ao episódio completo:
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Transcrição e adaptação:
Gustavo Espeschit é psicanalista, professor e escritor. Pós-graduado em Fundamentos da Psicanálise: Teoria e Clínica pelo Instituto ESPE/UniFil e Pós-graduado em Clínica Psicanalítica Lacaniana pela mesma instituição. Formado em Letras Inglês/Português com pós-graduação em Filosofia e Metodologia do Ensino de Línguas.
Autor do episódio:
Daniel é psicanalista, pesquisador e professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutor e Mestre em Filosofia pela Unicamp, com pós-doutorado na Michigan State University nos EUA e em Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn na Alemanha. Autor de diversos livros de Filosofia e Psicanálise. Obteve o título de licenciado em filosofia em 1992 na Universidade Nacional de Rosario (Argentina). Publicou artigos científicos em revistas nacionais e internacionais, livros e capítulos de livros sobre filosofia e psicanálise.
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