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O Inicio da Sistematização de um Saber Clínico

Foto do escritor: ESPEcastESPEcast

Atualizado: 17 de out. de 2024


Artigo do percurso"Uma Introdução ao Diagnóstico Psicanalítico," já disponível na plataforma ESPEcast


A questão do diagnóstico em psicanálise sempre levanta questionamentos dos mais diversos. Como se dá? Sobre que bases? Existe um diagnóstico definitivo em psicanálise?

Na plataforma ESPECast está disponível um percurso de quatro encontros com o professor Leonardo Miranda – psicanalista e psicólogo, doutor em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) - que procura elucidar essas questões – e por que não dizer colocar outras.

O primeiro encontro – “O início de uma sistematização de um saber clínico” – versa sobre a complexa história do diagnóstico em psicanálise. Retomando temas de sua tese de doutorado, Leonardo traça uma análise histórico-crítica desde os primórdios da psiquiatria moderna na Europa do século XVIII, destacando a influência de figuras como Philippe Pinel durante a Revolução Francesa.

Ao explorar a transição de critérios morais para uma abordagem técnica e científica no diagnóstico e tratamento da saúde mental, Leonardo oferece uma reflexão profunda sobre as origens e evolução desse campo.

A seguir, os principais pontos abordados neste encontro.

Boa leitura!


 


Início de Conversa

A psicanálise e a psiquiatria partem de um mesmo entroncamento, porém são saberes distintos e nunca houve pretensão de confundi-los. Havia sim um diálogo profícuo entre Freud e seus contemporâneos psiquiatras, como Eugene Bleuler, Richard von Kraft-Ebing, dentre outros. Assim sendo, suas maneiras de diagnosticar também são distintas e específicas.

Neste aspecto, Leonardo nos convida, neste primeiro encontro do percurso, a pensar o diagnóstico psiquiátrico do ponto de vista de uma construção histórica, com localização histórico-geográfica, e que poderia ter tomado rumos diferentes dos que conhecemos hoje.  Segundo Leonardo, é preciso entender que o diagnóstico em psiquiatria é uma consequência de um diálogo e é fruto de influências externas da filosofia e de um debate social que ocorria no período em que ele foi inicialmente formulado.

“Vou primeiro fazer uma advertência: vamos fazer sim uma abordagem centrada na Europa do século XVIII, e não vamos expandir para pensar como funcionam outras abordagens da medicina como a medicina oriental. A gente vai fazer uma medicina ocidental, que foi a que influenciou Freud.” – nas palavras do professor Leonardo. 



Europa. Fim do Século XVIII.

Com o declínio do feudalismo do século XV e XVI, acontece um êxodo rural que impele a população para os grandes centros urbanos. Isso gerou um grande problema social, tendo em vista que as elites tinham que encontrar uma solução para aquelas pessoas pobres que tomavam conta das cidades. Alguns eram válidos, outros inválidos. Alguns serviam ao mercado de trabalho, outros estavam em estado de pura mendicância.

No livro “A História da Loucura”, o filósofo Michel Foucault demarca, historicamente, o início dos cuidados com a saúde mental, dentro desse contexto social: a inauguração, por Luis XIV, em 1656, do Hospital Geral de Paris, um conglomerado de hospitais, que acumulavam tanto as funções de casa de custódia quanto de asilo, sendo alguns prédios os antigos leprosários da Idade Média. Dentre estes hospitais, estavam o Hospital de Bicêtre e o Hospital da Salpêtrière


A Grande Internação

Com a Revolução Francesa – que durou de 1789 a 1799 – os revolucionários, partilharam o poder com o rei, até o mesmo ser decapitado. 

“Até essa data - até a eclosão da Revolução - o Hospital Geral de Bicêtre, o Hospital Geral de Paris, chegou a abrigar em torno de 1% da população de Paris. 1% da população, isso está descrito no próprio livro de Foucault. Ele chegou a ter 6 mil abrigados. E Foucault chama esse fenômeno de A Grande Internação.” – nos conta Leonardo.

Nesta Grande Internação, quatro legiões de proscritos foram abrigadas: os loucos, os que faziam mau uso dos corpos, os que praticavam feitiçaria e os bêbados e promíscuos. Assim, havia internado ali criminosos, prostitutas, homossexuais, alcoólatras, loucos. Ou seja, esse movimento é descrito como uma forma de tirar das vistas da população os proscritos da sociedade. As maneiras, porém, de internação – ou “abrigamento” – dessas pessoas não passavam, necessariamente, por critérios médicos. Uma comissão de juízes as indicava ou, às vezes, carta régia. 

“Estou dando destaque para a carta régia porque a Assembleia dos Revolucionários, entre 12 de março e 26 de março, emite uma série de decretos desabrigando as figuras que estavam ali, que foram abrigadas, que foram asiladas, via carta régia. Era uma forma de se contrapor ao regime que eles estavam depondo, de se contrapor àqueles critérios, de desautorizar o rei e de se contrapor ao antigo regime. Portanto, há uma grande libertação das figuras que estavam lá nessas casas, nesses asilos. Porém, os loucos não foram abarcados pelo decreto que retirava essa grande internação, que os retirava dessa grande internação. ”  - aponta Leonardo.

Os loucos, porém, não foram abarcados pelo decreto que os retirava da Grande Internação.  Neste cenário, a Assembleia dos Revolucionários nomeia Philippe Pinel, em 1793, como diretor do Hospital de Bicêtre, instigando-o a buscar novos critérios para o “abrigamento” da loucura. Este critério deveria ser estritamente técnico e laico.



O Tratamento Moral de Pinnel

Assim sendo, influenciado pela Escola dos Ideólogos, da qual fazia parte, Pinnel parte para dar ao diagnóstico e ao tratamento da saúde mental um critério científico e publica o Tratado Médico-Filosófico, ou simplesmente Tratado, onde ele propõe um tratamento para a loucura que ele nomeia de “tratamento moral”. Este tratamento buscaria recuperar algo da “desrazão” que motivaria a loucura. 

“Ele tentava recuperar algo, um fundo de razão, havia um fundo de razão na loucura. Era essa a tese principal de Pinel. Com uma intervenção mais baseada num tratamento moral, e aqui não quer dizer um tratamento moral no sentido de uma moralidade, no sentido de uma moral religiosa, mas no sentido de que havia uma distinção entre mente e corpo, entre espírito e orgânico, e Pinel apostava muito que através do tratamento direcionado ao que havia de inorgânico na loucura, é o que ele poderia fazer para recuperar determinadas figuras. ” – nos conta Leonardo -

“Esse tratamento moral pressupunha uma série de regras rígidas, regras rígidas de horários. Os alienados precisavam passear em torno do hospital, precisavam sair do abrigo onde eles estavam, desse asilamento, desse acorrentamento em que eles estavam. E aí vai o nome, o grande gesto humanitário de Pinel. Esse grande gesto humanitário de Pinel é o que a posteridade dedica a ele, esse gesto heroico, esse gesto de desacorrentar os loucos. Foucault vai contestar isso. Ele vai dizer que ok [sic], Pinel tirou os grilhões do hospital da loucura, mas dedicou a loucura a essa outra categoria, e nisso que ele faz, nisso que ele dedica a loucura a essa categoria médica, ele acorrenta ao mesmo tempo a loucura.”

A partir, então, dessa influência que recebe da Escola Filosófica, Pinel vai sistematizar uma classificação das doenças mentais, já que havia uma série de categorias dispersas entre os médicos da época, dando uma face científica para a abordagem da loucura. O manual nosográfico de Pinel, então, parte de quatro categorias: a mania, a melancolia, a demência e a idiotia. 

“Veja que hoje nós temos nos manuais atuais algo em torno de 900 categorias para nomear as patologias, os transtornos, as síndromes, o sofrimento mental.” – ressalta Leonardo. 

Em 1795 Pinel vai assumir a direção do Hospital Salpêtrière, importante ícone da história da psicanálise, onde Jean-Martin Charcot conduziu suas experiências com as histéricas quase um século depois. Quando Pinel assume a direção do Salpêtriére, este era basicamente uma ala feminina do Hospital Geral de Paris, o que acaba sendo um ponto de similaridade entre os acontecimentos citados. 


Anton Mesmer

Um outro personagem, contemporâneo de Pinel, mas, segundo Leonardo, mais associado ao charlatanismo e ao misticismo, é Anton Mesmer.


Para o professor Leonardo, Mesmer era uma figura interessante por ter sua biografia transversal a biografia de outras figuras relevantes para a história da humanidade como os compositores Mozart e  Haydn – que, segundo Leonardo,  era amigo próximo do próprio Mesmer, - Louis Guillotin - Benjamin Franklin, Lavoisier.  Ester personagens tem, em algum momento, contato “com essa figura tão interessante, tão curiosa.”, nas palavras do professor Leonardo. 


Mas quem foi Mesmer?


Mesmer foi o autor da hipótese do magnetismo animal. Essa hipótese parte do princípio de que as doenças que não têm fundo orgânico são decorrentes de fluídos magnéticos que tomam o corpo da pessoa adoentada. Fazendo o movimento desses fluídos com a utilização de ímãs, se poderia promover a cura dessas doenças. 


A respeito disso, Leonardo comenta:


A  gente sabe, hoje,  com o nosso conhecimento que isso não faz o menor sentido mas o que é mais curioso é que Mesmer foi o responsável por dezenas, centenas de curas. Curas de figuras que ocupavam as mais altas esferas dos estratos sociais quanto as figuras mais pobres. Por isso Mesmer foi muito aclamado na Paris em determinado tempo da sua vida.” 


Fazendo então uso deste método, Mesmer promove então a cura de determinadas cegueiras, determinadas paralisias, determinadas dores. Conta-se que Mesmer não estava mais conseguindo atender todas as pessoas, que formavam filas na frente de sua casa. “Mesmer tinha um teatro dentro de casa onde duas peças, duas óperas de Mozart foram tocadas na sua estreia.” – conta Leonardo, acrescentando o fato curioso dele ser citado em duas óperas do grande compositor austríaco, uma delas sendo Così Fan Tutte: A Escola dos Amantes. Assim, há relatos de que ele chegou a curar uma sala cheia simplesmente tocando a mão em um instrumento de sopro e esse instrumento, ao ser tocado pelo músico, fazia com que as pessoas que ali estivessem se vissem curadas. 


Neste ponto, o professor Leonardo destaca o livro “A Descoberta do Inconsciente: História e Evolução da Psiquiatria Dinâmica” de Henri F. Ellenberger. Diz ele: “É uma literatura absolutamente importante para quem vai estudar um pouco sobre a descoberta do inconsciente, [para quem vai] falar sobre tratamento mental, tratamento de saúde mental. Essa figura, Mesmer, está lá descrita por Ellenberguer como uma figura muito importante porque ela desperta para alguma coisa que foi posteriormente descoberta por uma comissão de notáveis que foi composta por Luís XVI para julgar a existência do magnetismo animal.”.



Freud e o hipnotismo

É sabido que Freud inicia sua carreira como médico e como pesquisador das neuroses fazendo uso do hipnotismo e tomando contato com ele através de Charcot no Hospital Salpêtrière – fazendo novamente ponto de encontro entre os acontecimentos. 


“Charcot dedicou o seu prestígio para falar sobre uma afecção nervosa que tinha sido relegada no campo da medicina de sua época por ter atribuída a ela a teatralização.” – diz Leonardo, salientando não haver ali nenhum fundo neurológico, nenhuma base orgânica para essa afecção e que tudo ali não passaria, usando um termo popular, de um piti. A essa afecção nervosa se dá o nome de histeria. 


Freud observa, nas demonstrações de Charcot, a indução, via hipnose, de crises histéricas. Charcot demonstra que a histeria tinha uma manifestação regulada por princípios próprios, por uma lei interna própria, e isso era algo que precisava ser investigado. Ele fazia isso lançando mão de algo que estava à margem da sociedade por estar associado ao charlatanismo: a hipnose.


Depois de passar seis meses em Paris, Freud volta a Viena extremamente entusiasmado com a hipnose e na pretensão de realizar suas investigações sobre a histeria, essa afecção para qual não havia tratamento possível. Ele então se alia a Joseph Breuer, que também utilizava a hipnose, mas não como finalidade de pesquisa mas como finalidade de tratamento da histeria. 


Assim ele entra em contato com o caso de Bertha Pappenhein – conhecida como Anna O. – uma paciente de Breuer que cai enferma com uma crise histérica e simula o parto de um filho imaginário – filho este atribuído a Breuer. Breuer consegue, através do uso de técnicas hipnóticas, debelar a fase aguda da crise e, preocupado com seu casamento, encaminha o caso para um colega e viaja com a esposa para Veneza numa segunda lua de mel.


Posteriormente Freud vai recuperar essa história para pensar o fenômeno clínico ocorrido ali: o fenômeno da transferência. Ali o que houve  - e que deixou o médico tão embaraçado com tamanha dedicação da paciente a ele – foi um fenômeno transferencial. Descobrindo isso, Freud abre mão então da hipnose, por entender que ela ultrapassava as resistências e que, no contexto de um tratamento, retirar as resistências seria uma maneira forçosa e artificial de se camuflar tanto sua existência quanto sua aparição.


“Freud quer chamar isso pra conversa, quer chamar esse fenômeno [das resistências] pro contexto do tratamento porque poderia servir como um norte. Algo de nuclear estaria por detrás da existência das resistências. Freud vai então lançar mão de uma nova técnica que variava dessa construída por ele e por seu amigo Joseph Breuer que era a técnica do método catártico, que fazia uso da transferência.” 


 

CONCLUSÃo

Ao encerrar, o professor Leonardo salienta para concluir.

  1. o tratamento mental tem história e é importante saber sua história.

  2. os manuais nosográficos – de classificação de doenças – também possuem uma história e uma estrutura que advêm de uma influência filosófica, cujo primeiro propositor foi Phillipe Pinel. 

“Ficam essas indicações:  um pouco da história do tratamento mental,  um pouco da história da psicanálise e a gente parte, na próxima conversa,  sobre outros temas bastante importantes,  que têm link com isso que a gente conversou agora.” – diz Leonardo.

Até nosso próximo artigo.


 

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Transcrição e adaptação:

Gustavo Espeschit é psicanalista, professor e escritor. Pós-graduado em Fundamentos da Psicanálise: Teoria e Clínica pelo Instituto ESPE/UniFil e Pós-graduado em Clínica Psicanalítica Lacaniana pela mesma instituição. Formado em Letras Inglês/Português com pós-graduação em Filosofia e Metodologia do Ensino de Línguas.


Autor do episódio:

Leonardo Miranda: Professor e coordenador do curso de Pós-graduação em Psicanálise, Clínica e Cultura do Centro Universitário Celso Lisboa. Doutor e Mestre em clínica e pesquisa psicanalítica pelo Programa de Pós-graduação em Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pós-graduado em Psicanálise e Saúde Mental (UERJ). Psicólogo graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)


referências:

² Sobre o Método Catártico verificar o artigo https://www.especast.com.br/post/o-metodo-da-psicanalise


 
 
 

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